sábado, 30 de abril de 2011

O Mesmo e o Diverso (por Edouard Glissant)

Consideramos os avatares da história contemporânea como episódios desapercebidos de uma grande mudança civilizacional, que é passagem: do universo transcendental ao Mesmo, imposto de maneira fecunda pelo Ocidente, ao conjunto difratado do Diverso, conquistado de modo não menos fecundo pelos povos que conquistaram hoje seu direito à presença no mundo. O Mesmo, que não é uniforme nem estéril, pontua o esforço do espírito humano em direção a essa transcendência de um humanismo universal sublimando os particulares (nacionais). A relação dialética de oposição e de ultrapassagem compreendeu, na história ocidental, o nacional como obstáculo privilegiado, que era preciso conquistar ou vencer. Neste contexto, o indivíduo, considerado como veículo absoluto da transcendência, pôde afirmar de maneira subversiva seu direito a contestar o acidente particular, embora nele se apoiando. Mas, para nutrir sua pretensão ao universal, o Mesmo requisitou (teve necessidade de) a carne do mundo. O outro é sua tentação. Não ainda o outro como projeto de acordo, mas o outro como matéria a sublimar. Os povos do mundo foram então presa da cobiça ocidental, antes de encontrarem o objeto das projeções afetivas ou sublimantes do Ocidente.

O Diverso, que não é o caótico nem o estéril, significa o esforço do espírito humano em direção a uma relação transversal, sem transcendência universalista. O Diverso tem necessidade da presença dos povos, não mais como objeto a sublimar, mas como projeto a por em relação.O Mesmo requer o Ser, o Diverso estabelece a Relação. Como o Mesmo começou pela rapina expansionista no Ocidente, o Diverso nasceu através da violência política e armada dos povos. Como o Mesmo se eleva no êxtase dos indivíduos, o Diverso se expande pelo ela das comunidades. Como o Outro é a tentação do Mesmo, o Todo é a exigência do Diverso. Não é possível nos tornarmos trinidadianos ou quebequenses, se nós não o formos; mais é, contudo, verdadeiro que se Trinidad ou Quebec não existissem como componentes aceitos do Diverso, faltaria algo à carne do mundo - e hoje nós conhecemos esta falta. Dito de outra forma, se era desejável que o Mesmo se revelasse na solitude do SER, permanece imperioso que o Diverso passe pela totalidade dos povos e das comunidades.

O Mesmo é a diferença sublimada; o Diverso é a diferença consentida. Se não retivermos os aspectos fundamentais desta passagem (do Mesmo ao Diverso) que são a luta política, a sobrevida econômica, e se não contabilizarmos os episódios centrais (esmagamento dos povos, emigrações, deportações, talvez o mais grave dos avatares que é a assimilação), e se nos mantivermos em uma visão global, perceberemos que o Mesmo, imaginário do Ocidente, conheceu um enriquecimento progressivo, um estabelecimento harmonioso do mundo, como pôde "passar", sem ter que confessar, da idéia platônica à nave lunar. Os conflitos nacionais marcaram do interior o clã do Ocidente para uma única ambição, que era impor ao mundo como valor universal o conjunto de seus valores particulares. É assim que o slogan circunstanciado da burguesia francesa de 1789, "Liberdade, Igualdade, fraternidade", tendeu durante muito tempo a significar de maneira absoluta um dos fundamentos do humanismo universal. O mais belo sendo o que efetivamente ele significou. Foi ainda assim que o positivismo de Augusto Comte tornou-se realmente uma religião na América do Sul para uma elite "descentrada".

O que se chama em toda parte a aceleração da história, que provem da saturação do mesmo, como de uma água que transborda de seu continente desbloqueou em toda parte a exigência do Diverso. Esta aceleração, levada pelas lutas políticas, fez com que os povos que ainda ontem povoavam a face escondida da terra ( como houve durante muito tempo uma face escondida da lua) tiveram que nomear-se diante do mundo totalizado. Se não se nomeassem, amputariam o mundo de uma parte de si mesmo. Esta nomeação assume formas trágicas (guerra do Vietnam, esmagamento dos palestinos, massacres na África do Sul), mas passa também pelas expressões político-culturais: salvamento dos contos tradicionais africanos, poemas engajados dos militantes, literatura oral (oralitura) do Haiti, consenso difícil dos intelectuais antilhanos, revolução tranqüila no Quebec. (Sem contar os avatares insuportáveis: "impérios" africanos, "regimes" sul americanos, auto-genocídios na Ásia, dos quais poderíamos pensar que eles constituem o "negativo" - que não pode ser possuído - de um movimento planetário). Chamo de literatura nacional esta urgência para cada um de nomearse diante do mundo, isto é, esta necessidade de não desaparecer da cena do mundo e de contribuir, ao contrário, à sua ampliação.

Consideremos a obra literária em seu alcance mais amplo; podemos convencionar que ela satisfaz a dois usos: existe função de dessacralização, de heresia, de análise intelectual, que consiste em desmontar as engrenagens de um sistema dado, em pôr a nu os mecanismos escondidos, em desmistificar. Mas existe também função de sacralização, função de agrupamento da comunidade em torno de seus mitos, de suas crenças, de seu imaginário ou de sua ideologia. Digamos, parodiando Hegel e seu discurso sobre o épico e a consciência comunitária, que a função de sacralização seria o fato de uma consciência coletiva ainda ingênua, e que a função de dessacralização é o fato de um pensamento politizado. O problema contemporâneo das literaturas nacionais, tais como as concebo aqui, é que elas devem aliar o mito à sua desmitificação, e a inocência primeira à inteligência adquirida. E que, por exemplo, no Quebec, as inquietações de Jacques Godbout são tão necessárias quanto os enlevamentos inspirados de Gaston Miron. É que estas literaturas não tiveram tempo de evoluir harmoniosamente, do lirismo coletivo de Homero ao dissecamento de Beckett. É necessário que assumam de uma só vez, o combate, o militantismo, o enraizamento, a lucidez, a desconfiança de si mesmo, o absoluto do amor, a forma da paisagem, o nu das cidades, as ultrapassagens e as fixações. É o que eu chamo de nossa irrupção na modernidade.

Contudo, uma outra passagem tem lugar hoje, contra a qual nós nada podemos. É a passagem do escrito ao oral. Eu não estaria longe de acreditar que o escrito é o vestígio (trace) universalizante do Mesmo, onde o oral seria o gesto organizado do Diverso. Existe hoje uma vingança de muitas sociedades orais que, do próprio fato de sua oralidade, isto é, de sua não-inscrição no campo da transcendência, suportaram, sem poder defender-se o assalto do Mesmo. Hoje o oral pode se preservar ou se transmitir, de povo a povo. Parece que o escrito poderia transformar-se cada vez mais à medida do arquivo e que a escritura estaria reservada à arte esotérica e alquimia de alguns. É o que se manifesta na proliferação poluente de obras de livraria, que não são o símbolo da escritura, mas a reserva sabiamente orientada da pseudo-informação.

O escritor não deve velar a face diante de tal constatação. Pois a única maneira, na minha opinião de preservar a função da escritura (se cabe fazê-lo), isto é, de separá-la de uma prática esotérica ou de uma banalização informativa, seria de irrigá-la com as fontes do oral. Se a escritura não for preservada das tentações transcendentais, por exemplo, inspirando-se nas práticas orais, teorizando-as se for o caso, acredito que ela desaparecerá como necessidade cultural das sociedades futuras.

Como o Mesmo não será extinto nas vivacidades surpreendentes do Diverso, a escritura se fechará no universo fechado e sagrado do signo literário. Aí poderá realizar-se o sonho de Mallarmé, que também é o de Folch-Ribas, velho sonho do Mesmo, de abrir-se ao Livro (com um L maiúsculo). Mas não será o livro do mundo.

Uma literatura nacional apresenta todas estas problemáticas. Ela deve significar a nomeação dos povos novos, o que chamamos seu enraizamento, e que é hoje sua luta.

É a função de sacralização épica ou trágica. Ela deve significar - e se ela não o fizer (e apenas se ela não o fizer) ela permanecerá regionalista, isto é, folclorizada e caduca - a relação de um povo com o outro no Diverso, o que contribui para a totalização. É a função analítica e política, a qual não existe sem questionamento de si próprio.

Vê-se que se as literaturas ocidentais não precisam mais solenizar sua presença no mundo, operação fútil depois deste pesado processo histórico do ocidente, operação pela qual elas se demarcariam como mediocremente nacionalistas, elas têm, em compensação, o dever de meditar esta nova relação com o mundo, por onde elas assinalariam não mais seu lugar preeminente no Mesmo mas sua tarefa dividida no Diverso. É o que compreenderam os escritores franceses que, de maneira caricatural como Loti, trágica como Segalen, católica como Claudel, estética como Malraux, pressentiram que, depois de tanto terem caminhado em direção ao Oeste, que era enfim chegada a hora do Conhecimento do Leste. Hoje o Diverso abre os países. Quando examino a produção literária na França hoje, fico surpreso com o desconhecimento de tal clã, de tal falta de novas relações com o mundo, isto é, de sua falta de generosidade4. E não estou longe de pensar que nos encontramos em presença de uma espécie de periferia provisória do mundo.

Mas o Diverso é teimoso. Ele nasce em toda parte. As literaturas ocidentais reencontrarão esta função de inserção e se tornarão, dividindo o mundo, um sinal das nações, isto é um feixe do Relatado.

(continua)

Por uma epistemologia do Sul

Uma epistemologia do Sul assenta em três orientações:
aprender que existe o Sul;
aprender a ir para o Sul;
aprender a partir do Sul e com o Sul.

A música fora de si

"Os gritos dos sapos, de noite, não cessam. Sobem, separados, depois unidos, é impossível distingui-los uns dos outros, graves, agudos, débeis, poderosos, adicionam-se sem que se possam ver as gargantas de onde saem; incham a noite negra, enchem-na por completo, excluem todos os outros ruídos. Só eles existem. As linguagens, o roçar das folhas, as gotas de água, as respirações, o sussurrar dos insectos, nada mais existe. Só eles existem. Linguagem enfim total, por nada exprimir, tão-só um apelo, um desejo, a vida transformada em ruído. Colunas de órgãos umas contra as outras comprimidas, cada qual lançando o seu ruído teso, fora do sopro, ou fora das frases, fora do ritmo do coração ou dos movimentos dos brônquios. O concerto hesita, cresce, multiplica as suas buzinas, as suas sirenes. A noite está tão cheia de gritos que parece material, um ar de pedra, água de pedra, cheiros de pedra. Os sapos incham e desincham o papo, invisíveis, longínquos, e os seus gritos brotam ao mesmo tempo de todo o lado. Como se cada homem, cada animal e cada árvore levassem no fundo de si mesmos um sapo, como se a linguagem não fosse constituída senão pelos gritos dos sapos, como se as árvores estivessem envoltas em peles de sapo, e os olhos e as bocas fossem olhos e bocas de sapos.


Insistentes gritos, mágicos gritos, que arrasam o medo, que arrasam a morte. Os sapos estão em todo o lado, espalham-se pelo mundo, pela noite, apenas para gritar. Não se mexem. Não aparecem. Vivem, não morrem: os gritos cruzam-se, perturbam-se, unem-se, cem, trezentos, dez mil. Quantos serão eles? São apenas pelas gargantas que engrossam e se esvaziam, incansavelmente. Embriaguez gelada, que não está em seus corpos, nem nos cérebros, mas nas vozes, embriaguez que com o seu ruído paralisa o mundo. Os gritos imitam o sopro de respiração, mas não é um sopro, é um desdobrar da vida. Os sapos estão em todo lado. Tudo se torna sapo: o ar, a água, a floresta, as folhas das árvores, a lua, as nuvens, os rios, as resvaladiças sombras, os olhos dos animais, e , para além, talvez as cidades, as ruas cheias de vapor, as cascas dos automóveis, os rostos das mulheres, os estilhaços da guerra: são sapos, sentados nos pântanos, e virados uns para os outros, gritando sem se verem.

Embriaguez da identidade, a única identidade. Os homens tocam música com canas e são sapos. Por que haverá tanto ruído e tanto grito? Não há nada a dizer, talvez, e a noite não se volta, fica compacta, tem sempre o mesmo peso. Os gritos sucedem-se, pode ouvir-se cada um dos gritos, e ao mesmo tempo não se reconhece um só. Não há meio de os descrever. Escreve-se isto: iaô, iaô, oá, oá, ar, raô, vá, mas é o mesmo que nada ter escrito. Os ruídos sobem tão alto, tem tal força, que as palavras ficam bloqueadas no fundo da garganta e os pensamentos revolvem-se como bolas. Por vezes, sem razão, - nunca há razão para tudo isso – os gritos baixam. Hesitam, param. E é terrível o silêncio da noite. Depois voltam a subir, docemente, engrossam, dividem-se, batem contra o ecrã obscuro, pulam dois a dois, quatro a quatro, vinte a vinte. Dez mil gritos, cem mil gritos, em conjunto, ressoando, aumentados como se uma mão desconhecida girasse lentamente os três botões do amplificador onde estão escritas as palavas VOL TREBLE BASS. Eles aumentam os círculos da deflagração. Gritos sem raiva, sem ódio, sem paixão, que nada transportam, que nada pretendem, que não falam. Os sapos destroem a linguagem dos homens, e a linguagem dos pássaros, dos cães, dos morcegos. Os sapos inventam a música. Engrossam o corpo, fazem-no inchar, estendem sobre a terra a pele, cravam no mundo o olhar dos seus olhos. Os gritos regulares, sem harmonia, fazem erguer florestas estranhas, novas, por cima das florestas. Não se vêem as árvores, não se vê a folhagem, ouve-se porém cada um dos gritos estendendo sua ramagem no céu negro.

Os sapos já não são sapos, são os homens que são os sapos. Com os gritos eles desfazem em pedaços os sonhos e os desenhos, estão simplesmente sentados nas poças de água, escondidos na sombra, invisíveis, inacessíveis. As portas estão abertas, e através do ruído das flautas eles deslizam para o lugar sem perigo, sem inimigos, sem palavras.

Música impiedosa, e triunfal. A necessidade do ruído é por fim visível, é a sua evidência que trespassa o medo. Os gritos difundem-se em conjunto, balanceiam-se na obscuridade da noite, equilíbrio misterioso, ruídos do motor, os únicos ruídos verdadeiros do organismo vivo. Ruídos da comunidade, que soltam as gargantas uma à outra, que enxertam nas peles. Os homens, como os sapos, não têm nome. Mas os gritos que lhes desdobram o sopro são os seus nomes verdadeiros. Os gritos constantes percorrem o espaço e o tempo, entram por todos os orifícios de orelha que encontrarem. Os sons poderosos, encarniçados, juntos comprimidos, rede impenetrável às balas e às dentadas. Horror da sombra, do vazio, do silêncio, e delícias dos cantos triturados. As roucas gargantas uivam assim, durante horas, sem repouso, e os canudos profundos das flautas, e os altofalantes das violas eléctricas, durante horas sem se interromperem, sem falarem a ninguém, visando o céu vazio de inimigos, impregnando o universo de ruído, gritos de impaciência, moendo o mundo em poeira, possuindo os corpos semelhantes, fêmeas, gritos cujas modulações realizam de imediato o que a arte desejaria fazer, gritos de identidade e da metamorfose também: um dia, os homens estão sentados nos paúis, invisíveis na sombra dos húmidos esconderijos, no fundo das florestas, e as casas, as cidades de cimento, as estradas sulcadas de automóveis, as gares, as praias, as imensas áridas esplanadas estão povoadas de animais estranhos, de mãos moles, com as costas cobertas de pústulas, de rosto sem nariz onde os olhos são como duas glândulas: os sapos."

de "Índio Branco", de J.M.G. Le Clézio em tradução de Júlio Henriques, p.56-60

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Balthazar...


"Se nossa época alcançou uma interminável força de destruição,
é preciso fazer uma revolução que crie
uma indeterminável força de criação,
que fortaleça as lembranças, 
que delineie os sonhos, 
que materialize as imagens, 
que trate melhor os mortos, 
que dê aos efêmeros uma suntuosa leitura de sua transparência 
permitindo aos vivos uma navegação segura e veloz
por este vale de trevas.

O mundo em que vivemos necessita desesperadamente para subsistir 
da existência de pessoas contemplativas
e de poetas".  

campo. contracampo. nossa música .

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Como é

Em momentos de fraqueza eu...
durmo.
Quando estou escrevendo,
estou sempre caindo no sono.
Quanto aos pés, às vezes uso uma meia curta em cada um, ou uma meia curta num e uma meia normal noutro, ou uma bota, ou um sapato, ou um chinelo, ou uma meia curta e uma bota, ou uma meia curta e um sapato, ou uma meia curta e um chinelo, ou uma meia comum e uma bota, ou uma meia comum e um sapato, ou uma meia comum e um chinelo, ou simplesmente nada.
E às vezes uso em cada pé uma meia comum, ou num deles uma meia comum e no outro uma bota, ou um sapato, ou um chinelo, ou uma meia curta e uma bota, ou uma meia curta e um sapato, ou uma meia curta e um chinelo, ou uma meia comum e um chinelo, ou simplesmente nada.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Abril























Eu vi
Um vivo
Sol
Ou tom no
Só no
Sono
Azul.
Enquanto
Do canto
Dos teus calcanhares
Calcas os ares
Para o novelo
Da nebulosa,
Teu cotovelo
Em ângulo alvo
Alteando os lábios.
Abril
Abrir
A voz
As provas
De
Deuses.
Consonha
Em vôo
Aberto
O abeto,
Colhe os
Olhos
Azuis
Com os laços
Das sobrancelhas
E dos pássaros
Cerúleos.
No anil.
Há mil.

quinta-feira, 7 de abril de 2011