quarta-feira, 21 de julho de 2010

A música

(por Robert Walser)

A música é a coisa mais doce do mundo. Adoro o som de notas musicais. Correria mil léguas só para ouvir uma. Muitas vezes, no verão, quando passeio pelas ruas e ouço o som de um piano vindo de uma casa desconhecida, páro, pronto a morrer logo ali. Gostaria de morrer ao ouvir um bocado de musica. Imagino isso tão fácil, tão natural, mas claro que é impossível. As notas apunhalam-nos muito suavemente. As feridas que deixam podem arder mas não infectam. Delas jorram melancolia e dor em vez de sangue. Quando as notas param, tudo se acalma de novo dentro de mim. Então vou fazer os trabalhos de casa, comer ou jogar e não penso mais nisso. Um piano, acho eu, é o que soa com mais encanto. Mesmo nas mãos de um amador. Não é a interpretação que escuto, apenas o som. Nunca poderia ser músico. Porque fazer música nunca seria suficientemente doce, suficientemente inebriante para mim. Ouvir música é, de longe, mais espiritual. A música deixa-me sempre triste mas triste no sentido em que um sorriso triste é triste. Uma tristeza simpática, é o que quero dizer. A música mais alegre não é alegre para mim e a mais melancólica não me toca com particular melancolia ou desânimo. Ao ouvir música, tenho sempre a mesma impressão: falta qualquer coisa. Nunca descobrirei a causa desta suave tristeza, nunca hei-de investigá-la. Não desejo saber o que é. Não desejo saber tudo. Inteligente, como penso que sou, tenho, no entanto, por assim dizer, pouca sede de conhecimento. Desconfio que é por eu ser, por natureza, o oposto de curioso. Sinto-me perfeitamente feliz deixando todas as coisas em meu redor correrem sem preocupar a minha cabeça com o modo como acontecem. De certeza que isto é deplorável e não me ajudará a seguir uma carreira. Talvez. Não tenho medo da morte, por isso também não temo a vida. Vejo que comecei a filosofar. A música é a arte mais estouvada e por isso a mais doce. Os intelectuais nunca a apreciarão mas são os que mais profundamente beneficiam quando a ouvem. Não é possível querer entender e apreciar uma arte. A arte quer enroscar-se em nós. É uma criatura tão terrivelmente pura e autosatisfeita que se ofende quando alguém tenta passá-la à frente. Castiga quem se aproxima com a intenção de se apoderar dela. Os artistas depressa percebem isto. Acham que a sua profissão é lidar com a arte, com aquela que não se deixa tocar por ninguém. É por isso que nunca quis ser músico. Tenho medo do castigo que uma criatura tão justa possa infligir. É bom gostar de uma arte, mas deve-se ter cuidado e não o admitir para si próprio. O nosso amor é sempre mais forte quando não sabemos que amamos.  A música magoa-me. Nem sei mesmo se a amo de verdade. É ela que me encontra onde quer que seja, eu não a procuro. Deixo-a acariciar-me. Mas essas carícias são dolorosas. Como devo dizer? A música é um choro melodioso, uma evocação em notas, um quadro de sons. Não sei dizer com acerto. Por isso é que ninguém leva a sério as minhas considerações sobre arte. Sem dúvida que elas falham o alvo, aliás, como a música, que hoje ainda não me atingiu. Falta qualquer coisa quando não ouço música e quando ouço, então é que falta mesmo qualquer coisa. É o melhor que posso dizer sobre a música.



corpo de Robert Walser encontrado na neve, em Herisau (Suíça) no ano de 1956.

Robert Walser nasceu em Biel, na Suiça, em 1878. Depois de abandonar a escola, aos 14 anos, trabalhou como empregado de escritorio ao mesmo tempo que escrevia poesia. Levou uma vida errante e precária. Publicou o primeiro livro em 1904, As composições de Fritz Kocher. Escreveu obras como Os irmãos Tanner (1907), O Ajudante (1908), Jakob von Gunten (1909). Em 1909 regressou a Biel mas foi acometido de uma depressão profunda e de crises alucinatórias recorrentes. Durante esse período escreveu livros de prosas curtas como O passeio e outras histórias (1917), Vida de poeta (1918) e A rosa (1925). Escreveu os seus últimos livros a lápis numa letra cada vez mais miúda- microgramas, dificílimos de decifrar. Em 1933, Robert Walser se internou voluntariamente em uma clínica para doentes psiquiátricos em Herisau, onde passou o resto da vida. Ele disse: “vim aqui para ser louco e não para escrever”. Nessa época gostava de dar longos passeios a pé e não voltou a escrever uma única linha. Morreu sozinho, na neve, durante um de seus passeios habituais, no dia de natal de 1956. A sua obra, que inclui ainda poemas, ensaios e crônicas, foi admirada por escritores importantes. Era o escritor preferido de Robert Musil, Walter Benjamin e Franz Kafka, só pra se citar alguns. Benjamim chegou a  afirmar que Walser teria sido o último narrador da história. A sua tradução e divulgação foi tardia. Sabem quem foi o autor de histórias como A Branca de Neve, A Bela Adormecida e a A Gata Borralheira? Ele. Robert Walser.

3 comentários:

  1. Eu li e fiz uma resenha de O Ajudante. Tb conversei com o tradutor, José Pedro Antunes.

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  2. http://www.netsaber.com.br/resumos/ver_resumo_c_1052.html

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  3. Oi, Chico. Emprestei ao Vivi o livro O Ajudante. Ele falou q vai ler e te emprestar.

    Aí vai uma resenha q fiz do livro (link).

    Abs do Lúcio Jr

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