terça-feira, 27 de setembro de 2011

Dedicatória do autor

"Pois que dedico esta coisa aí ao antigo Schumann e sua doce Clara que são hoje ossos, ai de nós. Dedico-me à cor rubra e escarlate como o meu sangue de homem em plena idade e portanto dedico-me a meu sangue. Dedico-me sobretudo aos gnomos, anões, sílfides e ninfas que habitam a vida. Dedico-me à saudade de minha antiga pobreza, quando tudo era mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido lagosta. Dedico-me à tempestade de Beethoven. À vibração das cores neutras de Bach. A Chopin que me amolece os ossos. A Stravinsky que me espantou e com quem voei em fogo. À “Morte e Transfiguração” em Richard Strauss me revela um destino? Sobretudo dedico-me às vésperas de hoje e a hoje, ao transparente véu de Debussy, a Marlos Nobre, a Prokofief, a Carl Orff, a Schönberg, aos dodecafônicos, aos gritos rascantes dos eletrônicos – a todos esse que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos esses profetas do presente e que a mim me vaticinaram e a mim mesmo a ponto de eu nesse instante explodir em: eu. Esse eu que é vós pois não agüento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter de pé, tão tonto que sou, eu enviesado, enfim que é que se há de fazer senão meditar para cair naquele vazio que só se atinge com a meditação. Meditação não precisa de ter resultados: a meditação pode ter como fim apenas ela mesma. Eu medito sem palavras e sobre o nada. O que me atrapalha a vida é escrever.
E – e não esquecer que a estrutura do átomo não é vista mas sabe-se dela. Sei de muita coisa que não vi. E vós também. Não se pode dar uma prova da existência do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar. Acreditar chorando.
            Esta história acontece em estado de emergência e calamidade pública. Trata-se de livro inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta esta que espero que alguém no mundo me dê? Vós? É uma história em tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que eu também preciso. Amém para nós todos."

Clarice Linspector

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Teoria sentada



Um lento prazer esgota a minha voz. Quem
canta empobrece nas frementes cidades
revividas. Empobrece com a alegria
por onde se conduz, e então é doce
e mortal. Um lento
prazer de escrever, imitando
cantar. E vendo a voz disposta
nos seus sinais, revelada entre a humidade
dos corpos e a sua
glória secular. Uma dor esgota
a idade, com cravos, da minha voz.
E eu escrevo como quem imita uma vida e a vida
de uma inconcebível
magnitude. Ou somente de uma
voz. Um lento desprazer, uma
solidão verde, ou azul, esgota por dentro e para cima,
como um silêncio, o antigo
de minha voz.

O que digo é rápido, e somente o modo
de sofrer
é lento e lento. É rapidamente fácil e mortal
o que agora digo, e só
as mãos lentamente levantam o álcool
da canção e a formosura
de um tempo absorvido. Digo tudo o que é
mais fácil da vida, e o fácil
é duro e batido pela paciência.
Porque a terra dorme e acorda de uma
para outra estação.

Porque vi crianças alojadas no meus
melhores instantes, e vi
pedaços celestes fulminados na minha
paixão, e vi
textos de sangue marcados desordenadamente
pelo ouro. Porque vi e vi, na saída
de um dia para o começo
da primeira noite, e no despedaçar da noite.
E porque me levantei para sorrir
e ser cândido. E porque então
estremeci com a rapidez das palavras e a quente
morosidade
da vida. Eu disse o que era fácil
para dizer e eu tão
dificilmente havia reconhecido. Porque eu disse:
um prazer, um pesado prazer de cantar
a vida, consome a única voz
de uma vida mais sombria e mais funda.
E eu mudo sobre este campo parado
de cravos, quando a lua
rebenta, quando
sóis e raios crescem para todos os lados do seu
fulminante país.

Alguém se debruça para gritar e ouvir em meus
vales
o eco, e sentir a alegria de sua expressa
existência. Alguém chama por si próprio,
sobre mim, em seus terríficos confins.
E eu tremo de gosto, ardo, consumo
o pensamento, ressuscito
dons esgotados. Escrevo à minha volta,
esquecido de que é fácil, crendo
só no antigo gesto que alarga a solidão contra
a solidão do amor.
Escrevo o que bate em mim - a voz
fria, a alarmada malícia
das vozes, os ecos de alegria e a escuridão
das gargantas lascadas. Para os lados,
como se abrisse, com a doçura de um espelho
infiltrado na sombra. Fiel
como um punhal voltado para o amor
total de quem o empunha.

Alguém se procura dentro de meu ardor
escuro, e reconhece as noites
espantosas do seu próprio silêncio. E eu falo,
e vejo as mudanças e o imóvel
sentido do meu amor, e vejo
minha boca aberta contra minha própria boca
num amargo fundo de vozes
universais.

Alguém procura onde eu estou só, e encontra
o campo desbaratado
e branco da sua
solidão.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

POEMAS PARA COMBATIR LA CALVICIE

 
MANIFESTO

Senhoras e senhores
Esta é a nossa última palavra
- Nossa primeira e última palavra –
Os poetas desceram do Olimpo.
Para os nossos antepassados
A poesia era um objeto de luxo
Mas para nós
É um artigo de primeira necessidade:
Não podemos viver sem poesia.
Diferente de nossos antepassados
- E o digo com todo respeito... –
Nós sustentamos
Que o poeta não é um alquimista
O poeta é um homem como os outros
Um pedreiro que constrói seu muro
Um construtor de portas e janelas.
Nós conversamos
Na linguagem de todos os dias
Não acreditamos em signos cabalísticos.
Ademais, uma coisa:
O poeta está aí
Para que a árvore não cresça torcida.
Esta é a nossa mensagem.
Nós denunciamos o poeta demiurgo
O poeta Barata
O poeta Rato de Biblioteca.
Todos estes senhores
- E o digo com muito respeito...-
Devem ser processados e julgados
Por construírem castelos no ar
Por esbanjarem o espaço e o tempo
Redigindo sonetos à lua
Por agruparem palavras ao azar
Conforme a última moda em Paris.
Para nós, não:
O pensamento não nasce na boca
Nasce no coração do coração.
Nós repudiamos
A poesia de óculos escuros
A poesia de capa e espada
A poesia de chapéu abanado.
Propiciamos a mudança
A poesia a olho nu
A poesia a peito aberto
A cabeça de cabeça descoberta.
Não acreditamos em ninfas nem tritões.
A poesia tem que ser assim:
Uma garota rodeada de espigas
Ou não ser absolutamente nada.
Porém, no plano político
Eles, nossos avós imediatos,
Nossos bons avós imediatos!
Refrataram e se dispersaram
Ao passarem pelo prisma do cristal.
Uns poucos se tornaram comunistas
Não sei se foram realmente.
Suponhamos que foram comunistas,
O que eu sei é o seguinte:
Que não foram poetas populares,
Foram uns reverendos poetas burgueses.
Devemos dizer as coisas como são:
Somente um ou outro
Soube chegar ao coração do povo.
Sempre que puderam
Declararam de palavra e de peito
Contra a poesia dirigida
Contra a poesia do presente
Contra a poesia proletária.
Aceitemos que foram comunistas
Mas a poesia foi um fracasso
Surrealismo de segunda mão
Decadentismo de terceira mão,
Tábuas velhas devolvidas pelo mar.
Poesia adjetiva
Poesia nasal e gutural
Poesia arbitrária
Poesia copiada dos livros
Poesia calcada
Na revolução da palavra
Em circunstâncias de poder fundar-se
Na revolução das idéias.
Poesia do círculo vicioso
Para meia dúzia de eleitos:
“Liberdade absoluta de expressão!”
Hoje nos persignamos perguntando
Para que escreviam essas coisas
Para assustar ao pequeno burguês?
Tempo miseravelmente perdido!
O pequeno burguês não reage
Senão quando se trata do estômago.
Como vão assustá-lo com poesias?!

A situação é a seguinte:
Enquanto eles estavam
Por uma poesia do crepúsculo
Por uma poesia da noite
Nós propugnamos
A poesia do amanhecer.
Esta é a nossa mensagem.
Os resplendores da poesia
Devem chegar a todos por igual
A poesia chega para todos.
Nada mais, companheiros
Nós condenamos
- E o digo com respeito...-
A poesia do pequeno deus
A poesia da vaca sagrada
A poesia do touro furioso.
Contra a poesia das nuvens
Nós contrapomos
A poesia da terra firme
- Cabeça fria, coração ardente
Somos pés-no-chão decididos...
Contra poesia de café
A poesia da natureza
Contra a poesia de salão
A poesia de protesto social.
Os poetas desceram do Olimpo.

Estrela Distante. Detetive Selvagem.

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sexta-feira, 2 de setembro de 2011

ENTARDECER - K 488 Adagio

É tarde amor
É tarde para ser
Tarde para olhar-te de frente
Tarde para beijar-lhe o rosto no sorriso do tempo

Cá estou acometido por furores abstratos
Cá estou às costas, às tuas
Lançando suspiros de quem dura e sonha
De quem partilha as idades do céu e da terra
E das águas que inundam tudo

Bate e retorna os timbales do adeus
Bate no rosto o toque de tudo que volta
Aquilo que viaja e se enrosca em nós
Aquilo que nos sobrevive e devasta 

Levantei minhas pálpebras no fundo da noite
Lancei-me negro a negro em teus olhos
Vi a mulher nua no milagre de todas as coisas
E tu viste em mim a fé consumada
A celebrada certeza
De frágil lume nas mãos 

Brindamos o círculo presente
Erguemos os cálices futuros
Falamos dores leves
Calamos dores grandes
E com os dedos crepusculares
Escorregando pelas coxas
Desabamo-nos um sobre o outro
Destino sobre destino
Estremecidos e confundidos
Em camas amarrotadas
E lares estrelados

É quando eclipsamos longas e vastas ofensas ao mundo
Ofensas que abarrotam cidades em declínio
Ao mesmo tempo brutas e suaves
Em repetidas llibações de desespero
Sólidas solidões flutuantes
Rasgos elétricos
E tropeços bêbados

Sou o vento que lhe sopra às costas
Sou quem empurra o facho radiante de tua linguagem
Sou as folhagens que lhe balançam o verão
Sou quem cura a ferida da pedra, a sombra do dia
Sou a pétala adocicada de tua infância
Sou quem pede amor com olhos vazados de nascentes
Sou o dragão dardejante que te enleva a arte

A uma vagarosa mulher no mundo
Que agora amadurece o fruto da idade
Envio este meu presente, poemacto
Enlaço-me em teus cabelos e a ti despetalo

Na tarde do tempo cor de mel
Tarde de menos para dizer que alguém
Em algum lugar no mundo pulsa por ti
E lhe deseja reforços interiores
E terrenos habitáveis do sublime

Invento que é tempo de botões em flor
Tempo de esgotar a amada para ver
Como o amor trabalha na loucura
Tempo de levar a palavra para casa
Tempo de carregar a canção do fim dos tempos
Para as luas plácidas de teus lábios
E para as noites quentes de teu quarto

Reunir, expor e mudar tudo
De novo outra vez lá
No clamor da pele
No estertor dos ossos
No interior do seio

Aí onde vagueia em névoa
Teu mais secreto e álacre
Coração 
Que em ti e a mim
Estala
Persistente
Silente
Astra

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Homenagem a John Cage

No ano passado me liga uma dançarina aqui de BH dizendo que precisava de uma trilha sonora para uma performance solo de dança contemporânea. Marcamos um café e na conversa ela me disse que a coreografia seria inspirada nas vanguardas artísticas do séc. XX, com ênfase nos artistas norte-americanos, já que a performance seria apresentada lá. Achei meio esquisito uma brasileira levar para o EUA um trabalho com referências tão diretas aos artistas de lá com o risco da coisa ficar meio insossa e patética.  Nos despedimos com o compromisso que ela me ligaria para marcarmos um segundo encontro, quando eu levaria alguma idéia ou proposta. Fui pra casa com o desafio de pensar em alguma coisa...Foi então que me veio à mente figura de John Cage...pelo seu experimentalismo, pela sua interação com outras aéreas artísticas (inclusive a dança), pela sua ruptura estética, seu pensamento e seu interesse pela antropologia e a cultura de outros povos. Foi então que comecei a ler o livro "Silence" de Cage e a ouvir várias gravações de peças dele. Daí comecei a brincar sem compromisso, colando e sobrepondo algumas peças distintas, algumas compostaspara percussão ou voz.  Me interessei sobretudo por uma longuissima gravação dos diários de Cage, gravados na voz do próprio compositor. Os diários reúnem reflexões, comentários e apontamentos sobre o mundo, a arte, o processo civilizatório ocidental e oriental etc.. Então me veio a idéia de produzir alguns caleidóscópios sonoros utilizando esses diários-sonoros e intercalá-los com peças para piano preparado que fossem mais "cruas" e "diretas", que tivessem uma sonoridade tímbrica e tratamento musical mais definido para ajudar no trabalho coreográfico.
Essa idéia de caleidoscópio-sonoro feito apartir de colagens foi um recurso bastante experimentado por Cage, como por exemplo a recriação do Finnegans Wake de James Joyce onde Cage utilizou um vasto mosaico de sons e paisagens sonoras. O próprio conceito de colagem não era para Cage nenhum problema, já que a criação no século XX não poderia continuar refém ao tabu e ao culto do autoral e do "original"...
O que aconteceu foi que a bailarina nunca mais me ligou e nada aconteceu.
Em todo caso guardei alguma coisa dessa minha brincadeira e experimentaçãozinha:

Homenagem a John Cage by Francisco Cesar

Vida


VIDA,
a minha, a tua,
eu poderia dizê-la em duas
ou três palavras ou mesmo
numa
corpo
sem falar das amplas
horas iluminadas,
das exceções, das depressões
das missões,
dos canteiros destroçados feito a boca
que disse a esperança
fogo
sem adjetivar a pele
que rodeia a carne
os últimos verões que vivemos
a camisa de hidrogênio
com que a morte copula
(ou a ti, março, rasgado
no esqueleto dos santos)
Poderia escrever na pedra
meu nome
gullar
mas eu não sou uma data nem
uma trave no quadrante solar
Eu escrevo
facho
nos lábios da poeira
lepra
vertigem
cona
qualquer palavra que disfarça
e mostra o corpo esmerilado do tempo
câncer
vento
laranjal.

[Ferreira Gullar - O vil metal, 1954-60]

Vida by Francisco Cesar