terça-feira, 29 de junho de 2010

inventário da dor para uso pós-moderno

"As dores levem falam, as grandes calam-se"
Sêneca

Gilles Deleuze: O que é o ato da criação?









If July



Letra:

If July

They follow me here then I know what I have

if I swallowed it whole they'll show me the path

pretending to pray this is missed once a day

please allow faith to find what's new is her first name

memories have me all listening for her

time and its passing promises will save her

pretending to pray this is missed once a day

please allow faith to find what's first is her name

if July was my friend - I would not be alone

if I knew one of them - I could then live at home

if July were my friend

I would not be alone
 
(His Name Is Alive - álbum "Livonia" de 1990)

domingo, 27 de junho de 2010

no entressonho


E você, quem é que você acha que sonhou?

Ao sol brilhante segue o barco em frente.
Lento desliza, sonhadoramente,
Inclinando-se à voga na corrente.

Cara crianças, um trio a escutar,
Excitamento e brilho em seu olhar
Por tão singelo conto a palpitar.

Longe se vai aquele céu dourado,
Eco que se esmorece, do passado:
Ao sol de estio, sucede outono e enfado.

Sempre me perseguindo essa lembrança.
Alice , sombra no céu que não se alcança,
Nunca vista por olhos sem esperança.

Contudo, vejo-as ainda a palpitar,
Em seus rostos acesos este olhar
Luzindo de avidez ao escutar.

Imagens de um país de maravilhas,
Distantes neste sonho onde o sol brilha,
Distante sonho onde o verão se estilha.

Elas deslizam ao longe, no entressonho,
Lentamente sob um céu risonho...
Longe. A vida o que é, senão sonho?


(Trecho final de “Alice através do espelho e o que ela encontrou lá” escrito por Lewis Carrol em 1871. Tradução de Sebastião Uchoa Leite, 1977)

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Ler de vagar

"Os homens desesperados vivem em cantos. Todos os homens que amam vivem em cantos. Todos os leitores de livros vivem em cantos."  Pascal Quignard.

A cerca de 5 anos atrás o brasileiro lia em média 1,8 livros por ano. Atualmente o brasileiro lê cerca de 4,5 livros por ano. A média dos europeus é de 10 livros/ano.
Em pesquisa realizada com 32 países acerca do nivel de leitura e compreênsão dos leitores,o Brasil ficou em último lugar, inclusive entre universitários. Conclusão: o brasileiro aumentou seu volume de leitura, mas apresenta sérias dificuldades em compreender o que está escrito. Sabemos que existem vários níveis de compreênsão, desde a mais superficial até aquela mais profunda em que se é capaz de apreender o que não está escrito, elaborar um síntese e com ela extrair algo que possa impregnar a vida, transformá-la e recriá-la. Os especialistas comprovam a utilidade da leitura. Afirmam que ela aumenta nossa capacidade cognitiva, enriquece as potencialidades imaginativas além de contribuir com nossa capacidade de raciocínio e de elaboração signica. No entanto sabemos do atraso e da problemática da educação no Brasil.  Talvez grande parte da nossa incapacidade de exercer os direitos cívicos, organizar-se políticamente e exercer a cidadania e a democracia de forma mais consciente e atuante, esteja ligada a essa raza cultura cognitiva que retarda a apreênsão e formulação crítica do pensamento.  Imaginar saídas, estratégias e novos horizontes para a realidade em que nos encontramos só pode ser ensaiado e exercitado através de atividades como a leitura, na reflexão e nas várias conexões e usos que a linguagem oferece. Além disso, gostemos ou não, grande parte da memória da humanidade está relatada e expressa nos livros. É um legado da experiência humana que não pode ser menosprezado. Contudo ler e sobretudo escrever, não é fácil. É pra poucos. Sim, ler é pra poucos. Não falo aqui da questão da problermática do acesso ao livro e do acesso à formação escolar que deveria orientar e preparar o individuo para enfrentar a leitura e os níveis mais complexos de compreênsão. Ler é pra poucos porque ler é uma atividade arcaica, que necessita um tempo que hoje não dispomos. A leitura requer tempo, é uma atenção dirigida, uma foma de concentração mental. Não é uma atividade intelectual estéril e alheia à vida.  É uma atividade extra-ordinária que dispara novas intensidades e matizes novos na experiência vivivel. Ler é correr um risco. Literalmente corremos os olhos sobre traços e grafias inscritas. Mas falo aqui de outro risco: o de "não fazer nada" que substitui uma experiência real, física e corporal, por uma atividade (a leitura) que é de certa forma é uma atrofia desse tipo de experiência "mais viva". Ela é um risco porque subtamente podemos nos deparar com algo que pode nos abalar profundamente, por em cheque nossos valores e alterar nosso modo de ser e pensar. Ela é um movimento sem sair do lugar. Uma viagem no tempo e no espaço sem tirarmos os olhos da página. Sentamos em uma poltrona e nos movemos. Levitamos, vagamos. Pensamos com o coração.  Ler é abalar a estrutura de um quadro de previsibilidades que nos conformam. Isso, obviamente, dá trabalho.  Exige atenção e esforços contínuos. O esforço e o trabalho paciente da leitura. Compaciência com esse outro. Forma amorosa e corajosa de relação. Toda leitura é um desafio à compreênsão. Esse é seu  atrativo. Perder esse tempo na leitura é retirar-se para uma zona de combate, uma distância provisória desse mundo, para uma zona de intensidades múltiplas que nos colocam diante de algo indireto e crucial. O escrito não se impõe. Ele se expõe. Diante da escritura  e por causa dela ficamos também expostos, com as veias abertas, coração na mão e cabeça sacudida. É com a língua que pensamos. E qualquer mudança relevante na ordem do dia só poderá ser conquistada com uma maior noção, descoberta à distância, da natureza das coisas, e isso só será alcançado com uma justa medida do tempo. O tempo, o cuidado e a atenção ao outro podem ser exercitados através do ato de  ler. Amor e amizade. Amantes e amigos, grandes ledores desse outro, do mundo, do aqui, do aquém e do além. Ler é estar sujeito aos encontros inesperados do diverso. Marcha errante, vagar. Toda leitura esfumaça a realidade. Quem lê um livro aberto lê um mundo fechado. O leitor se abre como esse livro que o toma em suas mãos, afundando-se nas letras. Ele se entrega ao livro como se dedicasse a uma antiga arte mágica; em um estado flutuante; em uma espera solitária e fora do tempo.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Saramago: ensaísta da lucidez


Antes de ontem, domingo, assisti uma reexibição da entrevista do escritor Saramago no programama Roda Viva - Rede Cultura. Foi gravada em 2003 pouco antes do escritor lançar o seu livro "Ensaio sobre a lucidez". Um livro que segundo o autor é essencialmente político. Um livro político, mas que não fala diretamente de questões como EUA,  Iraque, Palestina, nem do petróleo, nem 11 de setembro...Na verdade trata de todas elas sem mencioná-las explicitamente. Saramago afirmou que se considera um ensaista que não sabe escrever bons ensaios e por isso utiliza a literatura. As coisas as vezes se mostram bastante simples, disse o escritor.  Por exemplo: existem bases militares norte-americanas espalhadas em todo o planeta. São mais de 300 mil soldados espalhados em 140 países como mostra o mapa acima. Saramago pergunta: "E quantas bases militares estrangeiras existem em território norte-americano?" ... Obviamente nenhuma. Desde os tempos remotos, e a Odisseia de Homero é prova disso, o mundo é disputado por oligarquias guerreiras. A história política da humanidade (ocidental e  oriental) sempre foi a mesma. E atualmente? Vivemos uma democracia? Saramago provoca: a democracia é uma ilusão. Vivemos uma falsa democracia. Fala-se todo dia esta palavra e nem sequer a discutimos, nem sequer sabemos o que ela significa. Nem sabemos como representá-la. A república era representada por uma mulher de seios fartos e uma espada na mão. Não sabemos como representar ou simbolizar a democracia. Hoje, ironicamente,  pode-se discutir tudo. Nenhum tema é proibido. Tudo se discute nesse mundo. Menos a democracia. A democracia deveria ser amplamente discutida, debatida no mundo inteiro. Deveria-se abrir um debate global sobre a democracia. A geração de hoje, ao contrário da anterior, parece estar aí e não estar nem aí.  Parece não querer nada. Alguns focos de resistência surgem aqui e ali mas não duram muito tempo. Não são capazes de se organizarem e perdurarem por muito tempo. Se isso ocorresse talvez testemunhássemos o germe de uma revolução. O sistema já prevê esses focos e de certa forma precisa dar espaço a eles para forjar uma ilusão democrática. Um verniz democrático. Ao indivíduo só lhe é concedido o direito de eleger seus representantes políticos através do voto. Acima disso ele está excluído de qualquer participação e intervenção eficaz. O mundo está nas mãos das grandes corporações e organizações mundiais. Nesse nível o indivíduo encontra-se excluído, inoperante, ou melhor, o sujeito é sujeitado pelas instituições econômicas e financeiras. Aos contemporâneos desse sec XXI  penso que é preciso forçar um exercício de lucidez. Uma poética da lucidez ancorada em uma capacidade de organização. Há muita desorientação, desperdício, dispersão e descentramento nos meus pares, os jovens deste inicío de século que serão os que chegarão até o fim deste, ao contrário da geração anterior que viveu a transição, a contradição, os dois lados da moeda.  É preciso um esforço de sobriedade, de aspiração e lucidez. Responsabilidade individual e espírito coletivo. Do contrário não haverá vida. Apenas uma sobrevida arrastada com o tempo, a era  baça de uma sobrevivência bastante medíocre, cega, surda e inconsequente.
Uivemos, disse o cão.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Chefe Seattle

Em 1854, "O Grande Chefe Branco" em Washington fez uma oferta por uma grande área de território indígena e prometeu uma "reserva" para os índios.

A resposta do chefe indígena:

“Como você pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? A idéia é estranha para nós.

Se nós não somos donos da frescura do ar e do brilho da água, como você pode comprá-los?
Cada parte da Terra é sagrada para o meu povo.
Cada pinha brilhante, cada praia de areia, cada névoa
nas florestas escuras, cada inseto transparente, zumbindo,
é sagrado na memória e na experiência de meu povo.

A energia que flui pelas árvores traz consigo a memória
e a experiência do meu povo.
A energia que flui pelas árvores traz consigo as memórias
do homem vermelho.

Os mortos do homem branco se esquecem da sua pátria quando
vão caminhar entre as estrelas.
Nossos mortos nunca se esquecem desta bela Terra,
pois ela é a mãe do homem vermelho.
Somos parte da Terra e ela é parte de nós.
As flores perfumadas são nossas irmãs, os cervos, o cavalo,
a grande águia, estes são nossos irmãos.
Os picos rochosos, as seivas nas campinas, o calor do corpo do pônei,
e o homem, todos pertencem à mesma família.

Assim, quando o Grande Chefe em Washington manda dizer que
quer comprar nossa terra, ele pede muito de nós.
O Grande Chefe manda dizer que reservará para nós um lugar
onde poderemos viver confortavelmente.
Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos.
Então vamos considerar sua oferta de comprar a terra.
Mas não vai ser fácil.
Pois esta terra é sagrada para nós.

A água brilhante que se move nos riachos e rios não é
simplesmente água, mas o sangue de nossos ancestrais.
Se vendermos a terra para vocês, vocês devem se lembrar de que
ela é o sangue sagrado de nossos ancestrais.
Se nós vendermos a terra para vocês, vocês devem se lembrar de que
ela é sagrada, e vocês devem ensinar a seus filhos que ela é sagrada
e que cada reflexo do além na água clara dos lagos fala de coisas
da vida de meu povo.
O murmúrio da água é a voz do pai de meu pai.

Os rios nossos irmãos saciam nossa sede.
Os rios levam nossas canoas e alimentam nossas crianças.
Se vendermos nossa terra para vocês, vocês devem lembrar-se de
ensinar a seus filhos que os rios são irmãos nossos, e de vocês,
e consequentemente vocês devem ter para com os rios o mesmo
carinho que têm para com seus irmãos.
Nós sabemos que o homem branco não entende nossas maneiras.
Para ele um pedaço de terra é igual ao outro, pois ele é um estranho
que chega à noite e tira da terra tudo o que precisa.
A Terra não é seu irmão, mas seu inimigo e quando ele o vence,
segue em frente.
Ele deixa para trás os túmulos de seus pais, e não se importa.
Ele seqüestra a Terra de seus filhos, e não se importa.

O túmulo de seu pai, e o direito de primogenitura de seus filhos
são esquecidos.
Ele ameaça sua mãe, a Terra, e seu irmão, do mesmo modo, como
coisas que comprou, roubou, vendeu como carneiros ou contas brilhantes.
Seu apetite devorará a Terra e deixará atrás de si apenas um deserto.
Não sei.
Nossas maneiras são diferentes das suas.
A visão de suas cidades aflige os olhos do homem vermelho.
Mas talvez seja porque o homem vermelho é selvagem e não entende.

Não existe lugar tranqüilo nas cidades do homem branco.
Não há onde se possa escutar o abrir das folhas na primavera, ou
o ruído das asas de um inseto.
Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não entendo.
A confusão parece servir apenas para insultar os ouvidos.
E o que é a vida se um homem não pode ouvir o choro solitário
de um curiango ou as conversas dos sapos, à noite, em volta de uma lagoa.
Sou um homem vermelho e não entendo.

O índio prefere o som macio do vento lançando-se sobre a face do lago, e
o cheiro do próprio vento, purificado por uma chuva de meio-dia, ou
perfumado pelos pinheiros.

O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas
compartilham o mesmo hálito – a fera, a árvore, o homem,
todos compartilham o mesmo hálito.
O homem branco parece não perceber o ar que respira.
Como um moribundo há dias esperando a morte,
ele é insensível ao mau cheiro.

Mas se vendermos nossa terra, vocês devem se lembrar de que o ar
é precioso para nós, que o ar compartilha seus espíritos
com toda a vida que ele sustenta.

Mas se vendermos nossa terra, vocês devem mantê-la separada e sagrada,
como um lugar onde mesmo o homem branco pode ir para sentir o vento
que é adoçado pelas flores da campina.

Assim, vamos considerar sua oferta de comprar nossa terra.
Se resolvermos aceitar, eu imporei uma condição – o homem branco
deve tratar os animais desta terra como se fossem seus irmãos.

Sou um selvagem e não entendo de outra forma.
Vi mil búfalos apodrecendo na pradaria, abandonados pelo
homem branco que os matou da janela de um trem que passava.

Sou um selvagem e não entendo como o cavalo de ferro que fuma
pode se tornar mais importante que o búfalo, que nós só matamos
para ficarmos vivos.

O que é o homem sem os animais?
Se todos os animais acabassem, o homem morreria
de uma grande solidão do espírito.
Pois tudo o que acontece aos animais, logo acontece ao homem.
Todas as coisas estão ligadas.

Vocês devem ensinar a seus filhos que o chão sob seus pés
é as cinzas de nossos avós.
Para que eles respeitem a terra, digam a seus filhos que a Terra
é rica com as vidas de nossos parentes.
Ensinem as seus filhos o que ensinamos aos nossos,
que a Terra é nossa mãe.
Tudo o que acontece à Terra, acontece aos filhos da Terra.
Se os homens cospem no chão, eles cospem em si mesmos.

Isto nós sabemos – a Terra não pertence ao homem –
o homem pertence à Terra.
Isto nós sabemos.
Todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família.
Todas as coisas estão ligadas.

Tudo o que acontece à Terra – acontece aos filhos da Terra.
O homem não teceu a teia da vida – ele é meramente um fio dela.
O que quer que ele faça à teia, ele faz a si mesmo.

Mesmo o homem branco, cujo Deus anda e fala com ele como de
amigo para amigo, não pode ficar isento do destino comum.

Podemos ser irmãos, afinal de contas.
Veremos.
De uma coisa nós sabemos, que o homem branco pode um dia
descobrir – nosso Deus é o mesmo Deus.
Vocês podem pensar agora que vocês O possuem como desejam
possuir nossa terra, mas vocês não podem fazê-lo.
Ele é Deus do homem, e Sua compaixão é igual tanto para com
o homem vermelho quanto para com o branco.
A Terra é preciosa para Ele, e danificar a Terra é acumular desprezo
por seu criador.
Os brancos também passarão, talvez antes de todas as outras tribos.

Mas em seu desaparecimento vocês brilharão com intensidade,
queimados pela força do Deus que os trouxe a esta terra e para algum
propósito especial lhes deu domínio sobre esta terra
e sobre o homem vermelho.
Esse destino é um mistério para nós, pois não entendemos quando os
búfalos são mortos, os cavalos selvagens são domados, os recantos
secretos da floresta carregados pelo cheiro de muitos homens, e a vista
das montanhas maduras manchadas por fios que falam.

Onde está o bosque?
Acabou.
Onde está a águia?
Acabou.
O fim dos vivos e o começo da sobrevivência.”

(Extraído de The Irish Press, sexta-feira, 4 de junho de 1976).

Exercícios ao piano


O calor cola. A tarde arde e arqueja.

Ela arfa, sem querer, nas leves vestes
e num étude enérgico despeja
a impaciência por algo que está prestes

a acontecer: hoje, amanhã, quem sabe
agora mesmo, oculto, do seu lado;
da janela, onde um mundo inteiro cabe,
ela percebe o parque arrebicado.

Desiste, enfim, o olhar distante; cruza
as mãos; desejaria um livro; sente
o aroma dos jasmins, mas o recusa
num gesto brusco. Acha que á faz doente.

Rilke

sexta-feira, 18 de junho de 2010

18 de junho



Hoje completo 28 anos. 2.8 de potência. O que me reserva os próximos 28? Chegarei lá? Como estarei, o que me tornarei?

"Em qual mansão ausente do meu coração pudera eu sob o céu vagar?"
Rilke

“Você olha um relógio. Ele funciona, mostra as horas. Você tenta compreender como ele funciona e o desmonta. Ele não anda mais. E no entanto essa é a única maneira de compreender…”
Tarkovsky

Meu aniversário vs. seu desaniversário rssss



(...)

"Evidentemente Humpty Dumpty estava muito bravo, embora nada dissesse durante um minuto ou dois. Quando ele falou de novo, foi num resmungo profundo.

– É uma coisa... muito... provocativa – disse finalmente – quando uma pessoa não distingue uma gravata de um cinto!

– Sei que é muita ignorância de minha parte – Alice disse, com uma humildade que abrandou Humpty Dumpty.

– É uma gravata, criança, e uma bem bonita, como diz você. E um presente do Rei Branco e da Rainha. É isso!

– É mesmo? – disse Alice, satisfeita de ter escolhido um bom assunto afinal.

– Deram-na a mim, – Humpty Dumpty continuou pensativo, enquanto cruzava um joelho sobre o outro e entrançava os dedos ao redor – deram-na a mim... como um presente de desaniversário.

– Perdão...? – Alice perguntou com ar espantado.

– Não estou ofendido – disse Humpty Dumpty.

– Quero dizer, o que é um presente de desaniversário?

– Um presente que se dá quando não é o seu aniversário, obviamente.
Alice refletiu um pouco.

– Gosto mais de presentes de aniversário – concluiu.

– Você não sabe do que está falando! – gritou Humpty Dumpty. – Quantos dias existem num ano?

– Trezentos e sessenta e cinco – respondeu Alice.

– E quantos aniversários você faz?

– Um.

– E se você tira um de trezentos e sessenta e cinco, quanto fica?

– Trezentos e sessenta e quatro, é claro.
Humpty Dumpty ficou em dúvida.

– Eu gostaria de ver isso no papel – disse.
Alice não pôde deixar de sorrir quando apanhou sua caderneta e fez a conta para ele:

3 6 5
-1
_____
3 6 4

Humpty Dumpty pegou a caderneta e examinou-a com cuidado.

– Parece estar certo... – começou.

– Está de cabeça para baixo! – Alice interrompeu.

– É com certeza que estava! – Humpty Dumpty disse com satisfação, quando ela a virou para ele. – Achei que parecia um pouco estranha. Como eu ia dizendo, parece estar certo... embora eu não tenha tempo para conferi-lo outra vez agora... E isso mostra que existem trezentos e sessenta e quatro dias em que você poderia ganhar presentes de desaniversário...

– Por certo – disse Alice.

– E apenas um para presentes de aniversário, portanto. Há gloria para você!

– Não sei o que você quer dizer com "glória" – Alice disse.
Humpty Dumpty sorriu com desdém.

– É óbvio que não sabe... até que eu lhe diga. Eu quis dizer: “Há um belo argumento infalível para você!”

– Mas “glória” não significa “um belo argumento infalível” – Alice objetou.

– Quando eu uso uma palavra, – Humpty Dumpty disse com certo desprezo – ela significa o que eu quiser que ela signifique... Nem mais nem menos.

– A questão é – disse Alice – se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.

– A questão é – disse Humpty Dumpty – quem será o chefe... E eis tudo."

(...)

Alice atracés do espelho e o que ela encontrou lá
Lewis Carrol
(trad. de Sebastião Uchoa Leite)

Mapa

Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluido,
depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.

Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
nem o mal.

Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.

Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.

Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações…
Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.
Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noites, mulheres andando,
presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas. Andarei no ar.

Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.

Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar,
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”…
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito…
viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.

Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre
em transformação.


Murilo Mendes, um dos mais importantes poetas brasileiros, nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 13 de maio de 1901 e morreu em Lisboa, no dia 13 de agosto de 1975.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Finn again....


Ontem foi o Bloomsday. A programação organizada no museu Inimá de Paula pelo pessoal do Grupo Oficcina Multimédia foi muito legal. O clima estava agradável e senti um astral muito bom por parte do público e dos participantes. Puxa! Uma noite para curtir e compartilhar os universos de Joyce e Carrol!

Destaco o bazar e os "suvenirs" produzidos pelo pessoal do GOM. Muito legal também o trabalho plástico da Adriana Peliano inspirado em Alice. É como se nós nos transpuséssemos para o outro lado enquanto a Drica ia comentando sobre o que encontramos ou encontraremos lá. Muito divertido e hilário o leilão de pertences do Joyce. Pena que eu não arrematei nenhum iten! Inestimável o pum engarrafado de Nora!

Valeu também a intenção da improvisação sonora do Ü! Foi um pouco complicado ajustar o som para a acústica do espaço e garantir que o blocos palavra/som fossem bem definidos, que as palabras fossem pipocando de maneira clara e tudo transcorresse de forma fluída no tempo. É uma proposta nada-fácil e que merece dedicação e apuro!

Deixo aqui a título de curiosidade e registro o roteiro dessa intervenção. Vale lembrar que nosso amigo Carlão ajudou ficando sentado na primeira fila e acenava com o celular no momento que teríamos que mudar de sessão já que a gente não tinha um controle do tempo... (Valeu Carlão!!)

Era grelhúsculo:

Roteiro da performance (proposta):

Video: edição de 10 min de paisagem que escurece (dia para a noite)

PRIMEIRA PARTE: O incriado (Era do caos)
Caráter: calma, precipitação.
Dinâmica: pianíssimo crescendo lentamente até um mezzo-piano.
Elementos: Sons agudos, ritmos indefinidos, assimétricos, atonais, aleatórios.
Imagem: paisagem esfumaçada, etérea.
Vozes: vocalises, grunhidos, gemidos, soluços e sons articulados sem definir palavras
Duração: 2'30" min.

TRANSIÇÃO: Gênese (Era teocrática)

Caráter: aspiração, o belo, espiritual.
Dinâmica: mezzo-forte
Elemento: Canto, tutti de nota longa, definida, em uníssono.
Imagem: côro, surgimento de uma luz.
Duração: 30"

SEGUNDA PARTE: Humpty Dumpty (Era aristocrática)
Caráter: organização, controle, jogo.
Dinâmica: mezzo-forte
Elementos: mantra organizado em ritmo binário e pendular.
Imagem: Ovo (Humpty Dumpty) equilibrando e oscilando em cima do muro.
Vozes: surgimento da palavra. Variação de palavras-valises que encaixem no ritmo pendular.
Duração: 2'30"

TRANSIÇÃO: Queda
Caráter: movimento
Dinâmica: forte
Elemento: som eletrônico disparado que simula uma queda
Imagem: a queda do ovo, de Finnegan, das cabeças, da humanidade, do muro de Berlim, das torres gêmeas..
Vozes: Palavra-trovão. Aos poucos o fluxo de palavras se intensifica e se desgarra do ritmo pendular criando uma textura de palavras em cintilação, constelação, caleidoscópica, ritmo assimétrico.
Duração: 30"

TERCEIRA PARTE: (Era democrática)
Caráter: demência, jocozidade, comicidade, frenezi, alucinação.
Dinâmica: oscilações (crescendos e decrescendos) entre piano e forte.
Elementos: groove do baixo, acordes no teclado, improvisos e solos de trompete e sax, texturas e frases rápidas na guitarra.
Imagem: Rei e Rainha de copas
Vozes: Diálogos obsessivos entre homem e mulher. Indagações de Alice.
Duração: 4'

FIM: Repetição obsessiva: "Cortem as cabeças! Cortem as cabeças!" 
"Minha ahhhhhh (cabeça cai!)"

Valeu demais!

Obrigado ao Joyce, ao Carrol, ao Gom, ao Inimá de Paula, ao Maurício, ao Ü, ao Vinikov, ao Marquim, ao Lucas e a todos que perderam 10 min do seu tempo hehehe!

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Bloomsday 2010 em BH


"Era grelhúsculo”...

Intervenção cênico-sonora com Ü e convidados

“Era grelhúsculo...” Nossa! Que palavra esdrúxula, estranha, meio aberrante e monstruosa não parece? Mas é assim que inicia o poema Jabberwocky de Lewis Carroll na tradução de Renato Suttana. O poema aparece no livro de Alice através do espelho no capítulo em que ela encontra Humpty Dumpty, o ovo que se equilibra em cima do muro. Esse poema teria inspirado James Joyce na criação do seu empreendimento literário mais ousado: o Finnegans Wake. “Era” alude ao início das inúmeras histórias infantis como em “Era uma vez...” e contém também o sentido de época, de tempo histórico como em “Na era medieval” ou como em “A era” o título de um poema de Madelstam. Grelhúsculo é uma palavra valise. Uma palavra inteiramente nova que incorpora duas palavras em uma só com dois sentidos diferentes: grelhúsculo = crepúsculo + grelha, o fogo que é usado pra preparar o jantar.

O Ü é uma banda de rock experimental de Belo Horizonte com influências do pós-punk, free-jazz e outras sonoridades cyber tropicais... foramdo por Pulinha (vocal), Miguel (baixo), Chico (saxofones), Marcelo (guitarra) e Pedro (baixo)

Os convidados: Vinicios (da banda Dead Lovers) nos vocais, Marcos (da banda Junkie Dogs) no teclado e Lucas (da banda Constantina) no trompete.

Nossa participação nesse Bloomsday 2010 segue o espírito to joy: Jogar, divertir, criar uma intervenção sonora e visual para abarcar um pouco do universo joyceano e carrolleano.

Basicamente nos inspiramos no Joyce no Finnegans Wake e na Alice, mais exatamente no diálogo do Humpty Dumpty.

Não pode passar de 10 min...

Por enquanto a coisa ainda não está muito definida (estamos brincando e descobrindo ainda...), mas ao que tudo indica iremos fazer um som que parte do nascimento do som e da palavra (como no gênesis...), até a palavra ir surgindo e se fixar em um ritmo pendular que é o movimento do Humty Dumpty. Aos poucos tudo vai se juntando nesse ritmo cíclico, oscilante, enquanto as palavras vão germinando e polulando até finalmente tudo se deslocar para uma constelação de palavras em que o ritmo se torne assimétrico e caleidoscópico... Aí a coisa vai para um diálogo nonsense, um surto psicótico da Alice (que está ficando engraçado!) parecido com o rei e a rainha de copas no livro... cortem-lhe as cabeças! Finalmente a idéia é finalizar em uma alicinação, um espasmo coletivo...demência total!

Tudo pode sugerir a idéia de uma queda, a grande queda do ovo, a queda do Finnegans, a queda mítica de toda a humanidade...

Junto com esse “roteiro sonoro” será projetado um vídeo extraído do documentário “Spiritual Voices” do diretor russo Sokurov. Uma imagem fixa, imóvel, que enquadra uma paisagem distante, invernal, bucólica e onírica e que aos poucos se transforma passando do claro (dia) e vai para o escuro (noite).. o crepúsulo, o grelhúsculo...

E como todo bom jogo tem uma regra, como no xadrez que encantou Lewis Carroll, a regra pra fazer essa intervenção e pra quem for lá no Inimá de Paula no dia 16 de junho é: cortem as cabeças!!

Devir animaaaaaaal!

Assim, monstruoso igual o jaguadarte Uuuhhhrrrr!!!!

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Orient Express

Um amigo meu está indo pra Istanbul. Outros dois, músicos, estão em Portugal e claro que vão dar uma voltinha pela europa... Pra todos espero que mergulhem nesse mundo estranho e que possam ser guiados pelos sons, pela música e descobrir novos rumos, novas cores, timbres, texturas e energias. À procura de novas mitocôndrias...

segunda-feira, 7 de junho de 2010

um poema de J.L. Borges

JAMES JOYCE

Em um dia do homem estão os dias
do tempo, desde aquele inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus estabeleceu os dias e agonias,
até esse outro em que o onipresente rio
do tempo terreno retorne à sua fonte,
que é o Eterno, e que se apague no presente,
o futuro, o ontem, o que agora é meu.
Entre a aurora e a noite está a história
universal. Da noite vejo
a meus pés os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dai-me, Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia.

J. L. Borges.
(do livro Elogio da Sombra)


The Farthest Place - John Adms



"As mulheres são amorosas e os homens são solitários.
Eles se roubam mutuamente a solidão e o amor."
René Char