terça-feira, 25 de outubro de 2011


Corona

De minha mão 
o outono devora suas folhas: somos amigos
Descascamos o Tempo das nozes e o ensinamos a partir:
O Tempo regressa à casca

No espelho é domingo,
no sonho dorme-se,
a boca fala veracidade.

Meu olhar desce para o sexo da amante:
Vemos-nos,
falamos sombrios,
amamos-nos como papoula e memória,
adormecemos como vinho nas conchas,
como o mar no brilho sanguíneo da lua.

Estamos abraçados à janela, vêem-nos da rua:
é tempo de saber!
é tempo da pedra se preparar para florescer
que a inquietação faça pulsar um coração.
É tempo de ser tempo.

É tempo.

(Paul Celan)

"Amamo-nos como papoula e memória"


Ingeborg Bachmann e Paul Celan apaixonam-se, na primavera de 1948, em Viena, onde passam dois meses juntos. “Meu quarto parece um campo de papoulas, ele me presenteia inúmeros ramos dessa flor”, escreve Bachmann à sua mãe, “conheci o poeta surrealista Paul Celan e ele está maravilhosamente apaixonado por mim”.


Celan, com 27 anos, estava de passagem em Viena. Judeu perseguido e traumatizado (os pais mortos em um campo de concentração), tinha acabado de fugir de Bucareste (onde exercia trabalhos forçados), arriscando a vida, e trazia na precária bagagem alguns valiosos poemas e uma recomendação de Alfred Margul-Sperber. Em um curto espaço de tempo foram publicados dezessete poemas na revista “Plan”, do editor Otto Basil. O poema “Todesfuge” (Fuga da Morte) - um dos mais representativos da época pós-guerra, já tinha sido publicado em uma revista literária, em Bucareste.

Bachmann tinha 21 anos e terminava os estudos de filosofia escrevendo a tese sobre Martin Heidegger. Conheceram-se no apartamento da artista Edgar Jené e logo se sentiram reciprocamente atraídos. O par freqüentava o Café Raimund junto com outros intelectuais instigados pelo escritor e crítico teatral, Hans Weigel, famoso por apoiar e incentivar novos autores e com quem Bachamann também possuía um caso.

As experiências pessoais e a reflexão sobre a História transgrediriam nos quase vinte anos de diálogo epistolar. Herzzeit (Tempo do coração, 2008) é o título da publicação, da editora Suhrkamp, da correspondência entre Ingeborg Bachmann (1926-1973) e Paul Celan (1920-1970), e uma sensação no meio literário. Era o testemunho que faltava para completar a trajetória de um complexo relacionamento amoroso que influenciou a criação poética de ambos, e que representou os conflitos existenciais de toda uma geração após o Holocausto, implicando ora na renegação ora na conscientização da culpa, e na confrontação da vítima com o culpado.

Do ímpeto desta ambígua paixão nasceu um dos poemas mais belos da língua alemã, “Corona”, que aparece na primeira coletânea de Paul Celan, Papoula e Memória, a qual seria publicada quatro anos mais tarde. Passados os dois meses em Viena, Celan viaja a Paris, Bachmann permanece na cidade e assim inicia-se uma troca de cartas prolongando-se até 1967, interceptada por algumas crises, atingindo um total de 86 cartas. O livro também inclui a correspondência entre Ingeborg Bachmann com a esposa de Celan, Gisèle Celan-Lestrange, e de Paul Celan com o autor Max Frisch, amante de Bachmann, de cuja convivência surgiu o romance, Malina, fechando assim a constelação das personalidades que circundaram este relacionamento.

De Ingeborg para Paul Celan, Viena, 24.06.1949:

Querido,

porque eu nada esperava, hoje, de manhã – o ano passado também foi assim – teu cartão chegou alado acertar o meio do meu coração, sim foi assim, eu te amo, nunca o disse naquela época. A papoula senti-a novamente, profunda, muito profundamente, tu a fizeste aparecer em um maravilhoso toque de mágica, não poderei esquecer jamais.

Às vezes não quero nada, a não ser ir embora, ir a Paris, sentir como tu tocas minhas mãos, como me tocas inteira com flores e depois novamente não saber de onde tu vens e para onde vais.

Para mim tu vens da Índia ou de um outro país mais distante, obscuro, recôndito, para mim tu és deserto e mar e tudo o que é mistério. Ainda não sei nada sobre ti e muitas vezes tenho medo por ti, não consigo imaginar que tu possas fazer outras coisas diferentes do que fazíamos aqui. Eu deveria possuir um castelo para nós e te buscar para que venhas a ser o meu senhor enfeitiçado, teremos muitos tapetes e música e inventaremos o amor.

Pensei muitas vezes, “Corona” é o teu poema mais belo, é o resgate perfeito de um instante, em que tudo se transforma em mármore e para sempre. Mas para mim aqui não será “tempo”. Anseio alguma coisa a qual não alcançarei, tudo é aluído e insípido, esmaecido e gasto antes de ser usado.
Em meados de agosto pretendo ir a Paris, somente alguns dias. Não me perguntes por que, para que, mas esteja lá para mim, uma noite inteira ou duas, três… Leve-me ao Senna, contemplá-lo-emos tanto tempo até nos tornamos pequenos peixes e assim voltarmos a reconhecer-nos.

Ingeborg


A Viena daquela época era, entretanto, uma cidade cheia de escombros, dividida em zonas controladas pelos ingleses, russos, americanos e franceses, mas que lentamente se recuperava dos estragos da guerra e retornava à vitalidade de outrora. Ademais possuía tradicionalmente um grande número de judeus e nunca deixou de ser a cidade da música e da literatura, de Hugo von Hofmannsthal, Sigmund Freud, Karl Kraus e Arthur Schnitzler.

“O jardim de Viena”, o “Stadtpark”, a “Sombra”, a “Janela”, são reminiscências que seriam novamente evocadas em um capítulo de Malina: “Tranqüilize-se, pense no Stadtpark, pense na folha, pense no Jardim de Viena, em nossa árvore, a paulównia floresce. Tranqüilizo-me imediatamente, pois a nós dois se passou o mesmo.”

De Paul Celan para Ingeborg Bachmann, Paris, 26.1.1949:

Ingeborg,

Tente esquecer por todo um instante que eu por tanto tempo e insistentemente silenciei – tive muitas preocupações, mais do que o meu irmão de novo poderia me aliviar, meu bom irmão, cuja casa tu certamente não terás esquecido. Me escrevas como se escrevesses para ele, para ele, que sempre pensa em ti e guardou em teu medalhão a folha que tu havias perdido.

Não me deixes, não o deixe esperar!

Eu te abraço

Paul 

As atrocidades da perseguição e morte de mais de seis milhões de judeus - o Shoah - deixariam profundas e indeléveis marcas na vida do judeu sobrevivente. A carta revela a dualidade desse espírito: um eu que pensa na amada constantemente e outro eu contido de permanente angústia e perturbações.

A tão desejada viagem de Bachmann a Paris demoraria alguns meses, a primeira marcada para junho de 1950, seria adiada por causa de uma crise de nervos. A carência financeira da estudante também a limitava na realização de seus planos. Somente no outono Bachmann viaja a Paris na esperança de uma vida ao lado do amado.

De Paul Celan para Ingeborg Bachmann, Paris, 20.08.1949:

Minha querida Ingborg,

Vens então daqui há dois meses - por que? Tu não dizes, não dizes também por quanto tempo, não dizes se recebeste a tua bolsa. Neste ínterim tu sugeres que poderemos, “trocar cartas”. Sabes, Ingeborg, porque eu durante estes últimos anos escrevi tão pouco? Não somente porque Paris me encurralou em um profundo silêncio, do qual não consegui me libertar de novo, porque eu não sabia o que tu pensas sobre estas curtas semanas em Viena. O que eu poderia concluir sobre as tuas primeiras, furtivas, frases esboçadas, Ingeborg?

Talvez eu esteja enganado, talvez seja isso mesmo, nos desviamos um do outro justamente onde gostaríamos de nos encontrar, talvez a culpa esteja em nós dois. Apenas penso às vezes, que o meu silêncio é mais compreensivo do que o teu, porque o sombrio, que está em mim, é mais antigo.

Sabes: as grandes decisões precisamos sempre tomar sozinhos. Quando esta carta chegou, na qual me perguntas, se tu deves escolher Paris ou os Estados Unidos, eu te diria com prazer, como eu me alegraria, se viesses. Podes entender, Ingeborg, porque eu não disse? Penso que se realmente é importante para ti (significa, mais do que qualquer coisa), viver na cidade em que eu vivo, não terias pedido meu conselho, pelo contrário.

Um longo ano findou-se, um ano, no qual muitas coisas devem ter te acontecido. Mas tu não me dizes quão distante está o nosso maio e junho atrás deste ano.

Quão distante ou o quão perto tu estás, Ingeborg? Digas,para que eu saiba, se tu fechas os olhos quando eu te beijo agora.

Paul

Paralelamente, a comunicação realizou-se também através de telefonemas. A correspondência era um reforço, às vezes, um melhor esclarecimento daquilo que havia sido dito por telefone, mas acima de tudo era o meio essencial e autêntico que dois poetas buscaram para se relacionarem.

Ingeborg Bachmann para Paul Celan, Viena, 24.11.1949:

Querido, querido Paul,

agora chegamos em novembro. Minha carta, a qual escrevi em agosto, ainda está aqui - tudo é tão triste. Talvez a esperaste. Tu hoje a receberias ainda?

Sinto que falo pouco, que não posso te ajudar. Eu precisaria ir até aí, te ver, te livrar das preocupações, te beijar e te segurar, para que tu não partas. Por favor, acredite, que eu estarei aí um dia e te buscarei. Vejo com muito medo, como te perdes nesse vasto mar, mas quero construir um barco e te salvar do sentimento de perda. Precisas apenas ajudar a ti mesmo também e não me dificultar tanto. O tempo, e muitas outras coisas, estão contra nós, mas não devem destruir aquilo que queremos salvar dele.

Me escrevas breve, por favor, e escrevas se queres ainda mais uma palavra minha, se ainda podes receber o meu carinho e o meu amor, se eu posso te ajudar, se às vezes ainda te agarras em mim e me escureces com o sonho pesado, no qual eu quero ser luz.

Tente me escreveres, me escrevas, me perguntes, coloques tudo para fora o que te incomoda.

Estou profundamente ao teu lado 

Tua Ingeborg

O inexcedível suspense entre a filha de um nazista e um refugiado judeu, entretanto, impediria uma convivência cotidiana. Celan era atormentado pelo trauma do regime nacional-socialista, principalmente pela morte dos pais no campo de concentração, “tenho que me lançar no meu abismo diariamente”. Em uma carta de Bachmann a Celan, não enviada, lê-se: “Tu queres ser vítima, realmente acredito que a grande infelicidade está dentro de ti mesmo.” No poema, No Egito, datado em agosto de 1948, dedicado a Bachmann, em homenagem ao vigésimo segundo aniversário da amiga e que abre o livro de correspondência, nos versos: “deves evocar da água: Ruth! Noemi! Miriam! / Deves enfeitá-las, quando dormires ao lado do Estranho (…) Deves dizer a Ruth e Miriam e Noemi! / Vejam, eu durmo com ele!”, - os nomes são das judias na oração de Moisés, o Egito era o país do exílio dos judeus e Paul Celan, um judeu refugiado de Czernowitz. O Estranho era incorporado na imagem da amiga não-judia.

A memória do passado sinistro nunca deixará de ser um espaço intransponível entre eles, um espaço onde jamais serão capazes de se encontrarem. Bachmann regressa passado apenas um mês, e depois de um período de silêncio, escreve-lhe: “ainda sabes que mesmo assim fomos muito felizes um com o outro, mesmo nas horas mais difíceis, quando fomos nossos piores inimigos? Por que nunca me escreveste? Por que não sentes mais que eu ainda quero ir ao teu encontro, com o meu coração louco e confuso e contraditório, que às vezes ainda luta contra ti? Começo a entender lentamente porque lutei tanto contra ti, por que não deixarei de lutar. Eu te amo e não quero te amar – hoje te digo mesmo correndo o risco de que não me ouças mais ou que não queiras mais me ouvir.”

Ou ainda este trecho extraído da carta de Celan em que as “pressuposições” traçam alguns contornos à inerente amargura do poeta: “tu tiveste mais da vida do que a maioria da tua geração. Nenhuma das portas te permaneceu fechada, e sempre te abre uma nova. Tu não tens nenhum motivo para ser impaciente, Ingeborg, e se eu puder te pronunciar um pedido, seria este: pense na rapidez em que tudo te é oferecido. E seja um pouco econômica nas tuas exigências.”

Entretanto, provavelmente não seria apenas este o motivo que originou o precipício existente entre eles. A atração e a recusa poderiam ser originárias também do conflito interior do fruir estético infenso à vida prática e rotineira, e a discrepância entre um homem poeta e uma mulher poeta no meio literário dominado pelos homens. Bachmann procurava dar a sua opinião sobre os poemas do amigo. Celan, por sua vez, abstinha-se de fazer comentários.

Mais uma vez ela tenta se aproximar do jovem Celan de forma definitiva poucos meses antes do casamento dele com Gisèle de Lestrange: “aceitei um emprego em uma transmissora de rádio, para nós”, esse “para nós” significava uma condição financeira melhor que os possibilitariam de viver juntos. Entretanto, Celan encontrava-se envolvido com Gisèle e recusa a proposta. E nesta época Bachmann começa a ordenar os poemas que configurariam a coletânea Die gestundete Zeit, publicada em 1953, em português: “O tempo adiado” ou “O Tempo aprazado” (como na tradução do português João Barroso), - segundo o biógrafo alemão Hans Höller, o título é uma alusão a uma passagem de Heidegger, em Ser e Tempo, referindo-se à Aristóteles: “o tempo contato.” Porém, também poderia ser uma alusão ao poema Corona, “É tempo de se ser tempo / É tempo”, pois os poemas dessa coletânea estão repletos de citações e alusões da relação, desembocando na vã tentativa da autora de resgatar aquela primavera, a segurança e o romantismo que os envolveram naquelas primeiras semanas. Em uma das cartas Bachmann menciona: “não posso viver como eu vivia desde que voltei de Paris, desaprendi a experimentar com a vida.“



Tornaram a se encontrar por ocasião da conferência do Grupo 47, em maio de 1952, em Niendorf, no Mar Báltico. Bachmann insiste com Celan para ler o Fuga da Morte. A leitura, entretanto, não foi bem recebida pelo grupo, a voz baixa e a expressão corporal apática do poeta foram comparadas às de Goebbels, justamente com as de um nazista. O grupo riu enquanto Celan lia “leite negro da madrugada nós o bebemos de noite/ nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos de noite / nós o bebemos bebemos / cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado.” Nas discussões do grupo Bachmann e Celan foram colocados um contra o outro, e a conseqüência não poderia ser diferente: as cartas se calaram - por cinco anos.

Em novembro de 1952, Bachmann conhece o jovem compositor Hans Werner Henzel e com ele parte para a Itália, lá vivem, em Forio, na ilha de Ischia, por quatro longos e descontraídos anos. Apesar da relação fraternal (Henzel era homossexual), chegaram a cogitar em casamento, como forma de segurança no meio social e em uma relação sem os arrebatamentos do amor carnal. Mas não chegaram a concretizar o intento e Bachmann retorna a Alemanha.

Após o longo silêncio a paixão reacendeu com mais ímpeto ao se reencontrarem, de forma inesperada e casualmente, na conferência de Wuppertal, em 1957. No final da conferência os amantes alugam um quarto de hotel, em Colônia, no endereço Am Hof, e desta noite originou o poema: Colônia, Am Hof (Köln, Am Hof), de Paul Celan.

Tempo do coração, vale
os sonhadores no lugar
dos ponteiros da meia-noite

alguns falam no silêncio, alguns se calam
alguns seguiram seu caminho
banidos e perdidos
estavam em casa

vós, catedrais

vós, catedrais não vistas
vós, rios inaudíveis
vós, relógios intrínsecos em nós.

A nova fase do relacionamento é uma fonte de inspiração para Celan que envia-lhe poemas e cartas ardorosas quase todos os dias. Neste ínterim, Ingeborg Bachmann vive em Munique. “Posso entender, Ingeborg, que não me escrevas, não possas escrever, não escreverás: estou dificultando as coisas para ti com as minhas cartas e poemas, dificultando mais ainda do que até agora. Me digas somente isto: devo te escrever e te enviar poemas? devo ir a Munique (ou para outro lugar) por alguns dias? Precisas entender: não consigo agir diferente. Se eu tivesse agido diferente, teria significado que te nego – isto não consigo. Fique tranqüila e não fumes muito! Paul!”

Entretanto, Celan era agora um homem casado e pai de um filho. “Paul! Há dez dias recebi a tua carta. Desde então quero te responder todos os dias e deixo de fazê-lo depois da longa e desesperada conversa contigo. Qual abreviação devo usar na carta? Me entenderás mesmo assim? Te agradeço por ter revelado tudo à tua esposa.”

Ao tomar conhecimento da amante, Gisèle Celan-Lestrange escreve a Bachmann: “Minha querida, Ingeborg. Hoje à noite li, pela primeira vez, os teus poemas. Eles me abalaram. Compreendi muito através deles e envergonho-me da reação que tive, quando Paul voltou pra ti.” Essa aceitação e compreensão fragilizaram a amante de forma decisiva e Bachmannn escreve a Celan: “Mas imaginas, o que a aceitação e a compreensão dela significam para mim? E para ti? Tu não deves deixar a tua esposa e o teu filho.”

Em julho de 1958, Ingeborg Bachmannn e Gisèle Celan-Lestrange finalmente se conhecem pessoalmente, a partir daí inicia-se uma esporádica troca de correspondência entre elas. No dia seguinte Bachmann conhece Marx Frisch.

Paul Celan continua casado com Gisèle e visita Bachmann várias vezes, em segredo, enquanto a poeta realiza leituras pela Alemanha. Aqui o relacionamento atinge o auge com todo o seu estado de exaltação. Na carta que Celan envia a Bachmann o sentimento é de ansiedade: “irei a Munique (…) Não sei o que tudo isso significa, não sei como devo chamá-lo, defini-lo, talvez, destino e missão, procurar um nome não tem sentido, eu sei que é assim, para sempre. Também sinto como tu: que posso pronunciar e escrever o teu nome sem ter que lutar com um arrepio que me abate, para mim isto é, apesar de tudo, uma felicidade. Também sabes, tu foste, quando eu te encontrei, ambos para mim: o erótico e o espiritual. Isto não pode ser nunca separado, Ingeborg. Pense No Egito. Todas as vezes que o leio, te vejo neste poema.”

O que se sucede nesta seqüência é o declínio de uma relação amorosa que já estava desde o início condenada a malograr. Paul Celan é novamente acusado de plágio por Claire Goll, viúva do famoso dramaturgo e também poeta Yvan Goll. Ele havia conhecido o casal em Paris, em 1949, e naquela época traduziu alguns poemas de Goll. A primeira tentativa de calúnia surgiu em 1953 e culminou, em 1960, desencadeando uma série de transtornos psíquicos que levou o poeta à internação diversas vezes em clínicas psiquiátricas. O chamado “caso Goll” fez irromper o trauma do qual Celan sofria, como se “todo ele fosse permanentemente uma ferida aberta”, mencionou o poeta Émile Cioran. A difamação saiu também em alguns jornais renomados, e neste mesmo período o crítico alemão Günter Blöcker, escreve uma resenha negativa sobre a coletânea Sprachgitter (Grades da palavra), no jornal Tagesspiegel, agravando mais ainda a paranóia irreversível de Celan.

Não é de se negar completamente a existência de uma determinada tendência ao anti-semitismo submersa neste meio. Em outubro deste mesmo ano, 1960, Paul Celan ganha o prêmio mais prestigiado da língua alemã, o Georg-Büchner. Bachmann irá ganhá-lo quatro anos mais tarde. Apesar de tudo sentia-se perseguido e não reconhecido pela crítica, buscando desesperadamente aliados entre os amigos, principalmente junto a Bachmann que vivia agora com autor Max Frisch. Celan apela aos amigos no sentido de se manifestarem publicamente a seu favor. Também escreve a Marx Frisch que não compartilha das preocupações do amigo e até mesmo o ofende insinuando vaidade e ambição de escritor.

Em apenas oito anos Paul Celan tornou-se um poeta reconhecido no meio literário, recebia convites para lecionar em universidades alemãs e francesas, possuía um filho e uma esposa que o amava e o apoiava muito. Em uma carta a Bachmann Gisèle Celan-Lestrange escreve: “Paul está desesperado. Paul está esgotado. Ele não vai bem, ele não possui mais nenhuma coragem. Por favor, telefone para ele, se soubesses como ele se sente solitário, infeliz e completamente destruído pelo que lhe aconteceu. Eu te imploro, faças tudo o que puderes para que suceda alguma coisa positiva o mais rápido possível. Não o deixe sem notícia.” Nada colaborou para melhorar a angústia que recrudescia dentro do poeta, o trauma e o desespero, as crises de delírio, as alucinações e mania de perseguição, levaram-no ao suicídio em abril de 1970, nas águas do Senna.

Em 1958, Bachmann conheceu Marx Frisch em Paris, contudo, ainda emocionalmente envolvida com Paul Celan, - “o outono de outrora invade este outono”, - quase sucumbe na relação com o egocêntrico escritor que perdurou quatro anos. Em 1960, Frisch e Bachmann vão morar juntos e dois anos mais tarde o namoro é interrompido. Max Frisch publica então o romance, “Meu nome é Gantenbein”. Bachmann se reconhece na figura da protagonista e sente-se profundamente atingida e traída, resultando em várias crises de nervos e estadias em clínicas. No famoso discurso de agradecimento ela fala sobre a condição do indivíduo impulsionado à loucura: “de escrever ninguém fica louco, mas sim, como qualquer outra pessoa que não seja escritor, fica louco com a usurpação, com a violência, com a pura brutalidade, com a perda de sua honra, com a ameaça de sua existência.”

Em um capítulo de Malina lê-se: “Minha vida acabou, pois ele afogou-se com o transporte no rio, ele era a minha vida. Eu o amei mais do que a minha vida.” Ingeborg Bachmann falece três anos apenas após a morte de Paul Celan.

A importância do papel que Ingeborg Bachmann possuía na vida de Paul Celan, e vice-versa, era indiscutível, mas até que ponto a influência mútua interferiu na criação literária de ambos era um ponto difuso em suas biografias, a correspondência revela muitos aspectos que serviram como fonte de pressupostos diversos e abre novos caminhos para a interpretação.

Ingeborg Bachmann para Paul Celan, Viena, final de maio/início de junho 1949 (?), esboço de carta interrompido:

Paul, querido Paul,

Tenho saudade de ti e de nosso conto de fadas. O que devo fazer? Estás tão longe de mim e o teu cartão com o qual me dei por satisfeita não me basta mais.

Ontem recebi, através do Klaus Demus, poemas teus que eu não conhecia, também três da última fase. Não posso quase suportar que foi através deste caminho que chegaram até mim. Por favor, por favor, não permitas isso. Precisa haver alguma coisa também para mim.

Posso lê-los melhor do que os outros, porque te encontro neles desde que não há mais a travessa Beatrixgasse. Sempre es tu que me es importante, reflito muito sobre isso e falo contigo e pego tua estranha, escura cabeça entre as minhas mãos e queria te arrancar a pedra do peito, libertar tuas mãos com os cravos e te ouvir cantar. Não houve mais nada que te aconteceste que me fizesse pensar intensivamente em ti. Tudo continua como sempre, tenho trabalho e sucesso, homens estão de alguma maneira à minha volta, mas significam pouco: Tu, o belo e o triste os espalhas em meio aos dias disseminados.

Paul Celan para Ingeborg Bachamann, Paris, 20.6.1949:
Paris, am 20. Juni 49.

Ingeborg,

“inexato” e tarde chego este ano. Mas talvez somente porque eu queria que ninguém, além de ti, estivesse presente quando eu colocar as papoulas, muitas papoulas, e memória, tanto quanto muita memória, dois grandes ramos viçosos, em cima da mesa de teu aniversário. Desde semanas me alegro com este instante.

Paul




domingo, 23 de outubro de 2011

Chicago


The seeds are planted here
But they won’t grow
We won’t have to say goodbye
If we all go
Maybe things will be better in Chicago
To leave all we’ve ever known
For a place we’ve never seen
Maybe things will be better in Chicago
Well It’s braver to stay
Even braver to go
Wherever she goes I go
Maybe things will be better in Chicago

What we need the lord will give us
All we want we carry with us
You know where I can be found
Where the rainbow hits the ground
I’m not alone
I’m not afraid
This bird has flown from his cage
There’s so much magic we have known
On this sapphire we call home
With my coat and my hat
I say goodbye to all that
Maybe things will be better in Chicago
Maybe things will be better in Chicago

Tom waits - Bad As Me (2011)
Tom Waits: vocal,banjo,piano,guitar,percussion
Larry Taylor: guitar,bass
Marc Ribot: guitar
Keith Richards: guitar
Casey Waits: drums
Clint Maedgen: saxes
Ben Jaffe: trombone,bass clarinet
Charlie Musselwhite: harmonica

sábado, 22 de outubro de 2011

Poema

Ouvi falar de um homem
que dizia palavras com tal beleza
que bastava ele pronunciar os nomes
e as mulheres se entregavam a ele.

Se estou mudo diante de seu corpo

enquanto o silêncio floresce como tumores em nossos lábios
é porque ouço um homem subir as escadas
e limpar a garganta atrás de nossa porta.

(Leonard Cohen)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

VIRAÇÃO s.f: aragem ou vento fresco e suave que costuma soprar à tarde do mar para a terra.

Vaga madrugada
devaneios incompletos
repletos de interior a exterior
invadem um vasto oceano estendido

A grande queda ao fim
com cataratas aéreas-submersas
reflete outras tantas vidas

Uma forte propensão à irrealidade
dança de cima à baixo
inclinada sobre o azul-marinho

Ancorados sem tocar o fundo
soltos no manto do sopro 
o rumor da palavra
dor
o brilho da palavra
viragem

Drama

agora ar é ar e coisa é coisa: traço

nenhum da terra celestial seduz
nossos olhos sem ênfase onde luz

a verdade magnífica do espaço.

Montanhas são montanhas; céus são céus -
e uma tal liberdade nos aquece
que é como se o universo uno, sem véus,

total, de nós (somente nós) viesse

- sim; como se, despertas do torpor
do verão, nossas almas mergulhassem
no branco sono onde se irá depor
toda a curiosidade deste mundo
(com júbilo de amor) imortal e a coragem
 
de receber do tempo o sonho mais profundo

ela cuida de toda agonia mortal. ela intercede pela humanidade.

um riso sem um
rosto (um olhar
sem um eu)
cuida 

do (não to
que) ou
desaparec
erá sem ru 

ído (na doce
terra) &
ninguém
(inclusive nós 

mesmos)
relem
brará
(por uma fra 

ção de
um mo
mento)onde
o que como 

quando
por que qual
quem
(ou qualquer coisa)


Mon Amour Mon Ami


Toi mon amour, mon ami
Quand je rêve c'est de toi
Mon amour, mon ami
Quand je chante c'est pour toi
Mon amour, mon ami
Je ne peux vivre sans toi
Mon amour, mon ami
Et je ne sais pas pourquoi
Je n'ai pas connu d'autre garçon que toi
Si j'en ai connu je ne m'en souviens pas
A quoi bon chercher faire des comparaisons
J'ai un cœur qui sait quand il a raison
Et puisqu'il a pris ton nom
Toi mon amour, mon ami
Quand je rêve c'est de toi
Mon amour, mon ami
Quand je chante c'est pour toi
Mon amour, mon ami
Je ne peux vivre sans toi
Mon amour, mon ami
Et je sais très bien pourquoi
On ne sait jamais jusqu'où ira l'amour
Et moi qui croyais pouvoir t'aimer toujours
Oui je t'ai quitté et j'ai beau résister
Je chante parfois à d'autres que toi
Un peu moins bien chaque fois
Toi mon amour, mon ami
Quand je rêve c'est de toi
Mon amour, mon ami
Quand je chante c'est pour toi
Mon amour, mon ami
Je ne peux vivre sans toi
Mon amour, mon ami
Et je ne sais pas pourquoi

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Máximo de Felicidade no Máximo de Lucidez


O que é a sabedoria? É a felicidade na verdade, ou «a alegria que nasce da verdade». Esta é a expressão que Santo Agostinho utiliza para definir a beatitude, a vida verdadeiramente feliz, em oposição ás nossas pequenas felicidades, sempre mais ou menos factícias ou ilusórias. Sou sensível ao facto de que é a mesma palavra beatitude que Espinoza retomará, bem mais tarde, para designar a felicidade do sábio, a felicidade que não é a recompensa da virtude mas a própria virtude... a beatitude é a felicidade do sábio, em oposição às felicidades que nós, que não somos sábios, conhecemos comumente, ou, digamos, às nossas aparências de felicidade, que às vezes são alimentadas por drogas ou álcoois, muitas vezes por ilusões, diversão ou má-fé. Pequenas mentiras, pequenos derivativos, remedinhos, estimulantezinhos... não sejamos severos demais. Nem sempre podemos dispensá-los. Mas a sabedoria é outra coisa. A sabedoria seria a felicidade na verdade.
A sabedoria? É uma felicidade verdadeira ou uma verdade feliz. Não façamos disso um absoluto, porém. Podemos ser mais ou menos sábios, do mesmo modo que podemos ser mais ou menos loucos. Digamos que a sabedoria aponta para uma direcção: a do máximo de felicidade no máximo de lucidez.

André Compte-Sponville, in 'A Felicidade, Desesperadamente'

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Para Ocasião da Partida do Irmão Querido



J. S. Bach: Capriccio sopra la lontananza del fratello dilettissimo (BWV 992)

Por "programática" se entende a obras compostas sobre uma narrativa prévia, tendo como seu oposto a noção de "música pura".

Considerada a única obra "programática" de Bach, esse capricho para cravo foi composto durante sua juventude em Arnstadt, por volta de 1704, em função da partida do irmão mais velho, Johann Christoph, que deixara o povoado de Lünenburg para trabalhar na orquestra da corte do rei suíço. O irmão, músico trompetista, exercera forte influência no jovem Bach, sendo responsável por boa parte da orientação e manutenção do compositor.

1.Arioso (Adagio): Ist eine Schmeichelung der Freunde, um denselben von seiner Reise abzuhalten (His friends try to persuade him not to undertake the journey

2.Andante: Ist eine Vorstellung unterschiedlicher Casuum, die ihm in der Fremde konnten vorfallen (They tell him of the various misfortunes that may befall him abroad)

3.Adagiosissimo: Ist ein allgemeines Lamento der Freunde (The general lament of his friends)

4.Allhier kommen die Freunde (weil sie doch sehen, daß es sanders nicht sein kann) und nehmen Abschied (His friends come, since they see that it must be, and take leave of him)

5.Allegro poco: Aria di Postiglione

6.Fuga all' imitatione della cornetta di Postiglione