sexta-feira, 9 de julho de 2010

O amigo


Giovanni Serodine, I Santi Pietro e Paollo sulla via del martirio (1625), Museu de Arte Antiga de Roma).

A amizade é tão estreitamente ligada à própria definição de filosofia que se pode dizer que sem ela a filosofia não seria propriamente possível. A intimidade entre amizade e filosofia é tão profunda que esta inclui o philos, o amigo, no seu próprio nome e, como freqüentemente ocorre para toda proximidade excessiva, corre o risco de não conseguir realizar-se. No mundo clássico, essa promiscuidade e quase consubstancialidade do amigo e do filósofo era presumida, e é certamente por uma intenção de alguma maneira arcaizante que um filósofo contemporâneo – no momento de colocar a pergunta extrema: “O que é a filosofia?” – pode escrever que esta é uma questão para ser tratada entre amis. De fato, hoje, a relação entre amizade e filosofia caiu em descrédito, e é com uma espécie de embaraço e de má consciência que aqueles que fazem da filosofia uma profissão tentam acertar as contas com este partner incômodo e, por assim dizer, clandestino de seu pensamento.

É notório que ninguém jamais conseguiu definir de modo satisfatório o significado do sintagma “eu te amo”, tanto que se poderia pensar que este tenha caráter performativo – isto é, que o seu significado coincida com o ato do seu proferimento. Considerações análogas poderiam ser feitas para a expressão “sou seu amigo”, mesmo se aqui o recurso à categoria de performativo não pareça possível. Ao contrário, penso que “amigo” pertence àquela classe de termos que os lingüistas definem não-predicativos, isto é, termos a partir dos quais não é possível construir uma classe de objetos na qual inscrever os entes a que se atribui o predicado em questão. “Branco, “duro”, “quente” são certamente termos predicativos; mas é possível dizer que “amigo” defina, nesse sentido, uma classe consistente? Por estranho que possa parecer, “amigo” compartilha essa qualidade com uma outra espécie de termos não-predicativos, os insultos. Os lingüistas demonstraram que o insulto não ofende quem o recebe porque o inscreve numa categoria particular (por exemplo, aquela dos excrementos, ou dos órgão sexuais masculinos ou femininos, segundo as línguas), o que seria simplesmente impossível ou, de qualquer modo, falso. O insulto é eficaz exatamente porque não funciona como uma predicação constativa, mas sim como um nome próprio, porque chama na linguagem de um modo que o chamado não pode aceitar, e do qual, todavia, não pode se defender (como se alguém insistisse em me chamar de Gaston, sabendo que me chamo Giorgio). Isto é, aquilo que ofende no insulto é uma pura experiência da linguagem, e não um referimento ao mundo.

Se isso é verdadeiro, “amigo” compartilha essa condição não apenas com os insultos, mas com os termos filosóficos que, como se sabe, não têm uma denotação objetiva, e, como aqueles termos que os lógicos medievais definiam “transcendentes”, significam simplesmente o ser.

Na Galeria Nacional de Arte Antiga em Roma conserva-se um quadro de Giovanni Serodine que representa o encontro dos apóstolos Pedro e Paulo na estrada do martírio. Os dois, imóveis, ocupam o centro da tela, circundados pela gesticulação desordenada dos soldados e dos carrascos que os conduzem ao suplício. Os críticos freqüentemente notaram o contraste entre o rigor heróico dos dois apóstolos e a comoção da multidão, iluminada aqui e ali por partículas de luz quase esboçadas ao acaso sobre os braços, os rostos e as trombetas. Da minha parte, penso que aquilo que torna este quadro propriamente incomparável é que Serodine representou os dois apóstolos tão próximos, com as frontes quase colocadas uma na outra, que estes absolutamente não podem se ver: na estrada para o martírio, estes se olham sem se reconhecerem. Essa impressão de uma proximidade por assim dizer excessiva é ainda acrescida do gesto silencioso das mãos que se apertam embaixo, dificilmente visíveis. Sempre me pareceu que esse quadro contém uma perfeita alegoria da amizade. O que é, de fato, a amizade senão uma proximidade tal que dela não é possível fazer nem uma representação nem um conceito? Reconhecer alguém como amigo significa não poder reconhecê-lo como “algo”. Não se pode dizer “amigo” como se diz “branco, “italiano” ou “quente” – a amizade não é uma propriedade ou uma qualidade de um sujeito.

Mas é tempo de começar a leitura de uma passagem de Aristóteles. O filósofo dedica à amizade um verdadeiro tratado, que ocupa os livros oitavo e nono da Ética a Nicômaco. Já que se trata de um dos textos mais célebres e discutidos de toda a história da filosofia, tomarei como pressuposto o conhecimento das teses mais consolidadas: que não se pode viver sem amigos, que é preciso distinguir amizade virtuosa, na qual o amigo é amado como tal, que não é possível ter muitos amigos, que a amizade a distância tende a produzir o esquecimento etc. Tudo isso é notório. Há, ao contrário, uma passagem do tratado que me parece não ter recebido suficiente atenção, que contenha, por assim dizer, a base ontológica da teoria:

Aquele que vê sente (aisthanetai) que vê, aquele que escuta sente que escuta, aquele que caminha sente que caminha e assim para todas as outras atividades há algo que sente que estamos exercitando-as (oti energoumen), de modo que sentimos, nos sentimos sentir, e se pensamos, nos sentimos pensar, e isso é a mesma coisa que sentir-se existir: existir (to enai) significa, de fato, sentir e pensar. Sentir que vivemos é por si só doce, já que vida é naturalmente um bem e é doce sentir que um tal bem nos pertence. Viver é desejável, sobretudo para os bons, já que para estes existir é um bem e uma coisa doce. Com-sentindo (synaisthanomenoi) provam doçura pelo bem em si, e isso que o homem bom prova em relação a si, o prova também em relação ao amigo: o amigo é, de fato, um outro em si mesmo (heteros autos). E como, para cada um, o fato mesmo de existir (to auton einai) é desejável, assim – ou quase – é para um amigo. A existência é desejável porque se sente que esta é uma coisa boa e essa sensação (aisthesis) é em si doce. Também para o amigo se deverá então com-sentir que ele existe e isso acontece no conviver e no ter em comum (koinonein) ações e pensamentos. Nesse sentido, diz-se que os homens convivem (syzen) e não como para o gado, que condividem o pasto. [...] A amizade é, de fato, uma comunidade, e, como acontece em relação a si mesmo, também para o amigo: e como, em relação a si mesmos, a sensação de existir (aisthesis oti estin) é desejável, assim também será para o amigo.

Trata-se de uma passagem extraordinariamente densa, porque Aristóteles aí enuncia teses de filosofia primeira que não são encontradas nessa forma em nenhum outro de seus escritos:

1) Há uma sensação do ser puro, uma aisthesis da existência. Aristóteles repete isto várias vezes, mobilizando o vocabulário técnico da ontologia: aisthanometha oti esmen, aisthesis oti estin: o estin é a existência – quod est - enquanto oposta à essência (quid est, ti estin).

2) Essa sensação de existir é em si mesma doce (edys).

3) Há equivalência entre ser e viver, entre sentir-se e sentir-se viver. É uma decisiva antecipação da tese nietzschiana segundo a qual: “Ser: nós não temos disso outra experiência que viver”. (Uma afirmação análoga genérica, pode ser lida também em De An: “Ser, para os viventes, é viver”.)

4) Nessa sensação de existir insiste uma outra sensação, especificamente humana, que tem a forma de um com-sentir (synaisthanesthai) a existência do amigo. A amizade é a instância desse com-sentimento da existência do amigo no sentimento da existência própria. Mas isso significa que a amizade tem um estatuto ontológico e, ao mesmo tempo, político. A sensação do ser é, de fato, já sempre dividida e com-dividida, e a amizade nomeia essa condivisão. Não há aqui nenhuma intersubjetividade – esta quimera dos modernos -, nenhuma relação entre sujeitos: em vez disso o ser mesmo é dividido, é não-idêntico a si, e o eu e o amigo são duas faces – ou os dois polos – dessa com-divisão.

5) O amigo é, por isso, um outro si, um heteros autos. Na sua tradução latina – alter ego – esta expressão teve um alonga história, que não é aqui o lugar de reconstruir. Mas é importante notar que a formulação grega tem algo a mais do que nela compreende um ouvido moderno. Antes de tudo, o grego – como o latim – tem dois termos para dizer alteridade: allos (lat. alius) é a alteridade genérica, heteros (lat. alter) é a alteridade como oposição entre dois, a heterogeneidade. Além disso, o latim ego não traduz exatamente autos, que significa “si mesmo”. O amigo não é um outro eu, mas uma alteridade imanente na “mesmidade”, um tornar-se outro do mesmo. No ponto em que eu percebo a minha existência como doce, a minha sensação é atravessada por um com-sentir que a desloca e deporta para o amigo, para o outro mesmo. A amizade é essa des-subjetivação no coração mesmo da sensação mais íntima de si.

Neste ponto, o estatuto ontológico da amizade em Aristóteles pode ser considerado já conhecido. A amizade pertence à prote philosophia, porque aquilo que nesta está em questão concerne à própria experiência, à própria “sensação” do ser. Compreende-se então por que “amigo” não possa ser um predicado real, que se acrescenta a um conceito para inscrevê-lo numa certa classe. Em termos modernos se poderia dizer que “amigo” é um existencial e não um categorial. Mas esse existencial – como tal, não-conceitualizável – é atravessado, entretanto por uma intensidade que o carrega de algo como uma potência política. Essa intensidade é o syn, o “com” que divide, dissemina e torna condivisível – ou melhor, já sempre condividida – sensação mesma, a doçura mesma de existir.

Que essa condivisão tenha, para Aristóteles, um significado político está implícito numa passagem do texto que acabamos de analizar e sobre a qual é oportuno retornar:

Mas então, também para o amigo se deverá com-sentir que ele existe, e isso acontece no conviver (syzen) e no ter em comum (koinonein) ações e pensamentos. Nesse sentido, diz-se que os homens convivem e não, como para o gado, que condividem o pasto.

A expressão que traduzimos por “condividir o pasto” é en to auto nemesthais. Mas o verbo nemo – que como se sabe, é rico em implicações políticas, basta pensar no deverbal nomos -, razoavelmente, significa, em sua forma medial, também, “tomar parte”, e a expressão aristotélica poderia significar simplesmente “tomar parte no mesmo”. Essencial é, em todo caso, que a comunidade humana seja aqui definida, em relação àquela animal, através de um conviver que não é definido pela participação numa substância comum, mas por uma condivisão puramente existencial, e por assim dizer, sem objeto: a amizade , como com-sentimento do puro fato de ser. Os amigos não condividem algo (um nascimento, uma lei, um lugar, um gosto): eles são com-divididos pela experiência da amizade. A amizade é a condivisão que precede toda divisão, porque aquilo que há para repartir é o próprio fato de existir, a própria vida. E é essa partilha sem objeto, esse com-sentir originário que constitui a política.

Como essa sinestesia política originária tenha se tornado no decurso do tempo o consenso ao qual confiam hoje seus destinos as democracias na última, extrema e extremada fase da evolução é,como se diz, uma outra história para se refletir.

(Giorgio Agamben, 2007)

Um comentário:

  1. Maravilhoso!
    Vou deixar de chamar meus "papás" de "papás", pra chamar eles de "amigos"

    Magnífico!!

    Dolce Vita
    Doçe Vida
    Dulce Vida

    Ci Vediamo!

    ResponderExcluir