quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

sobre Gertrude Stein



Gertrude é uma Gertrude

gertrude stein
não gostava de pound
q não gostava de gertrude
mas gostava de joyce
mas não gostava do finnegans wake
pound ignorou mallarmé
(mesmo valéry
vacilou ante un coup de dés)
mallarmé não entendeu
o lance de dados de flaubert
q lhe pareceu então
“uma aberração estranha”:
bouvard et pécuchet
em q pound anteviu lucidamente
“a inauguração de uma forma nova
sem precedentes”

“livre assez bête”
segundo valéry
q também não percebeu o projeto
dessa “enciclopédia crítica em farsa”
como a via o próprio flaubert
ou dessa
“encyclopédie de la bêtise”
como a chamou mais cruamente
geneviève bollème

bouvard et pécuchet
cujo segundo volume inacabado
e inacabável
– o “álbum” ou “sottisier” (tolicionário) –
equivaleria em radicalidade
ao projetado “livro”
de mallarmé
“mas é preciso estar louco
e triplamente frenético
para empreender um livro como este”
(flaubert a mme roger de genettes
sobre bouvard et pécuchet, 1872)
“você não acha
q é um ato de demência?”
(mallarmé a valery
sobre un coup de dés, 1897)

da impassibilidade
à impossibilidade

[...]

mas flaubert foi o pai
reconhecido
do conflito fraterno
desses irmãos antigêmeos
joyce e gertie
“james joyce et pécuchet”
era o titulo do artigo pioneiro
de pound sobre ulysses em 1922
e gertrude mais tarde:
“tudo o q fiz
foi influenciado por flaubert e cézanne”

“tout ce que j’ai de plus poétique
à vous dire
est de ne rien dire”
(flaubert)
“there was nothing to say
because just then
saying anything was nothing”
(g. stein)
“i am here
and i have nothing to say
and i am saying it
and this is poetry”
(john cage)

mas quero falar de gertrude
stein
porque ela teria feito 100 anos
este ano (1974)
se pudesse com schoenberg e ives
e se me perguntassem por que prefiro falar dos mortos
podendo falar dos vivos
respondo com fernando pessoa:
“com uma tal falta de gente coexistivel
como há hoje
que pode um homem de sensibilidade fazer
senão inventar os seus amigos
ou quando menos
os seus companheiros de espírito?”

[...]

ela é uma chata genial
a única q pegou o outro lado da questão
inglês básico mais repetições
it is it is it is it is.
if it and as if it
if it or as if it
and it is as if it and as if it.
or as if it.
repetições
q no monstruoso the making of americans
ultrapassam o limite da legibilidade

[...]

ela descobriu algo
não é dadá não é surrealista
é gertrude stein
gertrude é uma gertrude é uma gertrude é uma
“escutem aqui!
eu não sou nenhuma idiota
eu sei muito bem q na vida cotidiana
ninguém sai por aí dizendo
‘... é uma... é uma... é uma...’
sim
eu não sou nenhuma idiota
mas eu penso q nessa linha
a rosa está vermelha
pela primeira vez
na poesia inglesa
em cem anos

lançadora de manias
(“starter of crazes”)?
talvez
mas suas manias
duraram mais
do q duram as manias
e sua loucura
tem uma coerência
e uma limpidez
q não encontramos
nos brilharecos automatistas
de tantos surrealistas
em termos pignatarianos
ela é linguagem
enquanto os surrealistas
(q marxfreudizaram dadá)
são muito mais língua
alem de posteriores

[...]

num artigo
publicado em 1959
gertrude stein e a melodia de timbres
traduzi dois fragmentos de suas peças
four saints in threee acts (1927)
e listen to me (1938)
vale a pena lembrá-los

em four saints in three acts
(cinco palavras de uma silaba)
“an opera to be sung”
o uso dominante de monossílabos
cria verdadeiros blocos de moléculas sonoras
certos trechos parecem mais
a decupagem de uma partitura
onde a miúda permutação de palavras-sílabas
entre personagens
induz a uma
melodia de timbres
“um santo um verdadeiro santo
nunca faz nada
um mártir faz alguma coisa
mas um santo verdadeiramente bom
não faz nada
e assim eu queria ter quatro santos
q não fizessem nada
e eu escrevi os quatro santos em três atos
e eles não fizeram nada
e isso foi tudo” (autobiografia de todo mundo)

a música de virgil thomson
com seus propositados clichês e lugares-comuns
de gregoriano a exército da salvação
é a de um satie norte-americano
q consegue captar com grande eficácia
os valores prosódicos do texto
a ópera foi apresentada
pela primeira vez em 1934
(um ano antes da estreia de porgy and bess)
por um elenco de cantores negros
q se apaixonaram pelo texto
sem entendê-lo
e portanto o entenderam

gertrude stein não ouviu
le testament de villon
a ópera de ezra pound
extraordinária proeza musical
provençal-futurista
em cuja orquestração robert hughes vê
uma modalidade de klangfarbenmelodie
mas virgil thomson a assistiu
em paris (salle pleyel) em 1926
e recordou-a anos mais tarde
“não era exatamente a música de um músico
mas era talvez a mais bela música de poeta
desde thomas campion”

gertie e pound
convergem
nos textos de john cage
as “conferencias” e o longo poema (?)
diário: como melhorar o mundo
(você só tornará as coisas piores)
parcialmente incluído em a year from monday
(de segunda a um ano)

os monossílabos
voltaram a obcecar gertrude em listen to me
“eu pretendia escrever todo um livro
sobre palavras de uma sílaba
numa peça q acabo de escrever
listen to me
continuo pensando em palavras de uma sílaba
é natural escrever poemas com palavras
de uma só sílaba
e algumas vivem com palavras de três letras
e outras vivem com palavras de quatro letras”
e/ou
“eu direi em palavras de uma sílaba
tudo o q há para dizer
não muito bem mas tão bem
e assim não houve pano
pano
é uma palavra de duas sílabas”

elizabeth sprigge
conta q as últimas palavras de gertrude
foram:
“qual é a resposta?”
e como ninguém respondesse:
“então qual é a pergunta?”

marcel duchamp disse:
“não há solução
porque não há problema”
e flaubert, antes:
“a imbecilidade
consiste
em querer concluir”


(Augusto de Campos. O anticrítico. São Paulo: Companhia das letras, 1986)

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