sábado, 30 de abril de 2011

A música fora de si

"Os gritos dos sapos, de noite, não cessam. Sobem, separados, depois unidos, é impossível distingui-los uns dos outros, graves, agudos, débeis, poderosos, adicionam-se sem que se possam ver as gargantas de onde saem; incham a noite negra, enchem-na por completo, excluem todos os outros ruídos. Só eles existem. As linguagens, o roçar das folhas, as gotas de água, as respirações, o sussurrar dos insectos, nada mais existe. Só eles existem. Linguagem enfim total, por nada exprimir, tão-só um apelo, um desejo, a vida transformada em ruído. Colunas de órgãos umas contra as outras comprimidas, cada qual lançando o seu ruído teso, fora do sopro, ou fora das frases, fora do ritmo do coração ou dos movimentos dos brônquios. O concerto hesita, cresce, multiplica as suas buzinas, as suas sirenes. A noite está tão cheia de gritos que parece material, um ar de pedra, água de pedra, cheiros de pedra. Os sapos incham e desincham o papo, invisíveis, longínquos, e os seus gritos brotam ao mesmo tempo de todo o lado. Como se cada homem, cada animal e cada árvore levassem no fundo de si mesmos um sapo, como se a linguagem não fosse constituída senão pelos gritos dos sapos, como se as árvores estivessem envoltas em peles de sapo, e os olhos e as bocas fossem olhos e bocas de sapos.


Insistentes gritos, mágicos gritos, que arrasam o medo, que arrasam a morte. Os sapos estão em todo o lado, espalham-se pelo mundo, pela noite, apenas para gritar. Não se mexem. Não aparecem. Vivem, não morrem: os gritos cruzam-se, perturbam-se, unem-se, cem, trezentos, dez mil. Quantos serão eles? São apenas pelas gargantas que engrossam e se esvaziam, incansavelmente. Embriaguez gelada, que não está em seus corpos, nem nos cérebros, mas nas vozes, embriaguez que com o seu ruído paralisa o mundo. Os gritos imitam o sopro de respiração, mas não é um sopro, é um desdobrar da vida. Os sapos estão em todo lado. Tudo se torna sapo: o ar, a água, a floresta, as folhas das árvores, a lua, as nuvens, os rios, as resvaladiças sombras, os olhos dos animais, e , para além, talvez as cidades, as ruas cheias de vapor, as cascas dos automóveis, os rostos das mulheres, os estilhaços da guerra: são sapos, sentados nos pântanos, e virados uns para os outros, gritando sem se verem.

Embriaguez da identidade, a única identidade. Os homens tocam música com canas e são sapos. Por que haverá tanto ruído e tanto grito? Não há nada a dizer, talvez, e a noite não se volta, fica compacta, tem sempre o mesmo peso. Os gritos sucedem-se, pode ouvir-se cada um dos gritos, e ao mesmo tempo não se reconhece um só. Não há meio de os descrever. Escreve-se isto: iaô, iaô, oá, oá, ar, raô, vá, mas é o mesmo que nada ter escrito. Os ruídos sobem tão alto, tem tal força, que as palavras ficam bloqueadas no fundo da garganta e os pensamentos revolvem-se como bolas. Por vezes, sem razão, - nunca há razão para tudo isso – os gritos baixam. Hesitam, param. E é terrível o silêncio da noite. Depois voltam a subir, docemente, engrossam, dividem-se, batem contra o ecrã obscuro, pulam dois a dois, quatro a quatro, vinte a vinte. Dez mil gritos, cem mil gritos, em conjunto, ressoando, aumentados como se uma mão desconhecida girasse lentamente os três botões do amplificador onde estão escritas as palavas VOL TREBLE BASS. Eles aumentam os círculos da deflagração. Gritos sem raiva, sem ódio, sem paixão, que nada transportam, que nada pretendem, que não falam. Os sapos destroem a linguagem dos homens, e a linguagem dos pássaros, dos cães, dos morcegos. Os sapos inventam a música. Engrossam o corpo, fazem-no inchar, estendem sobre a terra a pele, cravam no mundo o olhar dos seus olhos. Os gritos regulares, sem harmonia, fazem erguer florestas estranhas, novas, por cima das florestas. Não se vêem as árvores, não se vê a folhagem, ouve-se porém cada um dos gritos estendendo sua ramagem no céu negro.

Os sapos já não são sapos, são os homens que são os sapos. Com os gritos eles desfazem em pedaços os sonhos e os desenhos, estão simplesmente sentados nas poças de água, escondidos na sombra, invisíveis, inacessíveis. As portas estão abertas, e através do ruído das flautas eles deslizam para o lugar sem perigo, sem inimigos, sem palavras.

Música impiedosa, e triunfal. A necessidade do ruído é por fim visível, é a sua evidência que trespassa o medo. Os gritos difundem-se em conjunto, balanceiam-se na obscuridade da noite, equilíbrio misterioso, ruídos do motor, os únicos ruídos verdadeiros do organismo vivo. Ruídos da comunidade, que soltam as gargantas uma à outra, que enxertam nas peles. Os homens, como os sapos, não têm nome. Mas os gritos que lhes desdobram o sopro são os seus nomes verdadeiros. Os gritos constantes percorrem o espaço e o tempo, entram por todos os orifícios de orelha que encontrarem. Os sons poderosos, encarniçados, juntos comprimidos, rede impenetrável às balas e às dentadas. Horror da sombra, do vazio, do silêncio, e delícias dos cantos triturados. As roucas gargantas uivam assim, durante horas, sem repouso, e os canudos profundos das flautas, e os altofalantes das violas eléctricas, durante horas sem se interromperem, sem falarem a ninguém, visando o céu vazio de inimigos, impregnando o universo de ruído, gritos de impaciência, moendo o mundo em poeira, possuindo os corpos semelhantes, fêmeas, gritos cujas modulações realizam de imediato o que a arte desejaria fazer, gritos de identidade e da metamorfose também: um dia, os homens estão sentados nos paúis, invisíveis na sombra dos húmidos esconderijos, no fundo das florestas, e as casas, as cidades de cimento, as estradas sulcadas de automóveis, as gares, as praias, as imensas áridas esplanadas estão povoadas de animais estranhos, de mãos moles, com as costas cobertas de pústulas, de rosto sem nariz onde os olhos são como duas glândulas: os sapos."

de "Índio Branco", de J.M.G. Le Clézio em tradução de Júlio Henriques, p.56-60

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