sábado, 7 de novembro de 2009

Gosto muito de Joseph Beuys...




por

Thomas Hirschhorn

Cara, Coralie:Pediste-me no outro dia que te ajudasse a descobrir Joseph Beuys. Não creio que isso seja possível, pois a descoberta de um artista faz-se através da sua obra. Há aliás no Beaubourg uma ou duas obras dele que merecem ser vistas, sobretudo a peça Fond IV. Mas o que eu vou fazer é tentar explicar-te porque gosto dele.


A verdade é que quando digo que gosto dele não me refiro apenas ao seu trabalho, ou à sua vida, ou ao que ele quis. Gosto dele por motivos pessoais, porque este artista permitiu-me fazer uma abordagem sem complexos, não elitista, da arte. A arte dele afecta-me, diz-me qualquer coisa, tem um significado especial para mim, ajuda-me. A obra dele ajuda-me, a mim, a viver e a trabalhar. Embora tenha decidido dizer-te tudo isto aqui, estou consciente da quase impossibilidade do que resolvi fazer; é muito subjectivo e até talvez ingénuo.


Não há dúvida de que o que me impressiona em Joseph Beuys e o que eu sinto por ele é, em grande medida, demasiado parcial, compartimentado, talvez mesmo, quem sabe, redutor do seu percurso, mas é o que eu penso e portanto esta carta também é uma maneira de eu me aperceber um pouco melhor de como vejo Joseph Beuys. De uma maneira geral, as cartas que escrevo são sempre também cartas para mim mesmo. É sem dúvida egoísta, mas é a verdade. Pelo menos assim não preciso de me preocupar com respostas ou reacções negativas. Será talvez auto-análise primária, ou um recurso existencial.


Não sei. Joseph Beuys realizou uma obra intitulada Das Kapital ou apenas Kapital; seja como for, essa obra, que está agora em Schaffhausen, na Suíça, é na minha opinião uma obra capital. Não apenas essa obra, mas tudo o que Beuys disse em volta desse termo: ‘capital’. E para mim é absolutamente claro que foi a interpretação, sem dúvida muito pessoal, que Beuys faz do termo ‘capital’ que me ajudou a desenvolver o meu trabalho e a perseverar nele. Para começar, Beuys explica que, quando usa o termo ‘capital’ não está a falar do capital do capitalismo, nem do capital no sentido marxista, descrito em Das Kapital.


Aliás , Beuys sempre proclamou o fracasso desses dois sistemas redutores. Beuys afirma que é a arte o verdadeiro capital concreto. É muito importante salientar aqui que ele não estava a pensar em telas ou esculturas, ou noutras coisas passíveis de ser vendidas. Não, o processo criativo que conduz à realização de uma obra de arte, em que a arte consiste, esse é que é o capital. É, pois, evidente que capital nada tem a ver com dinheiro. O capital não é o dinheiro. Para mim, é tão importante entender isso de uma vez por todas que, no meu caso, depois de o ter percebido verdadeiramente tudo mudou. Muda tudo. Coralie, foi isso que aconteceu. Nunca ninguém mo tinha dito e um artista que consegue dizer isso e demonstrá-lo através da sua obra é de facto um artista fundamental.


Porque, na minha opinião, a força da obra de Beuys reside precisamente no facto de mudar tudo na prática, tornar tudo diferente no dia-a-dia, e para mim a grande arte é a que consegue isso. E não a arte pela arte, de novo em voga neste fim de século, ou a arte para melhorar ou suportar o quotidiano. É a arte que muda o homem. Como compreender então a afirmação de Beuys de que todos os homens são artistas? Justamente à luz do termo ‘capital’ que é, portanto, a energia, a criatividade, a capacidade de cada um. Não é o talento. Não é a habilidade. Não é o dinheiro. Não é a educação.


E não é o facto de se nascer em tal ou tal meio. Essa energia, essa criatividade, essas capacidades individuais que todos temos, não as temos talvez sempre em doses iguais, por certo uns têm mais disto ou daquilo, mais tarde ou mais cedo, em maior ou menor quantidade. Essas energias são o capital de cada um, mas é preciso perceber que esse é o verdadeiro capital e tomar consciência disso é um acto de tal modo criativo, artístico, que quem o faz tem de ser um artista. Esse indivíduo pode ser empregado de balcão, cientista, motorista, músico profissional, mas é um artista. Essa percepção de si mesmo como artista, com determinadas capacidades e consciente delas, e que por conseguinte sabe que dispõe de um capital que claramente não é o dinheiro que tem ou deixa de ter, essa consciência de que cada um tem o seu próprio capital é muito importante porque transforma as relações entre as pessoas.


Deixa de ser possível uma exercer poder sobre outra por ter capital capitalista, capital institucional ou capital moral. O único capital que conta é o capital pessoal e a consciência que cada um tem dele. É evidente que isso coloca as pessoas em pé de igualdade. É assim que eu entendo a frase “cada pessoa é um artista”. No meu caso, trabalho para tomar consciência do meu capital. Sabes, quando penso em todas as obras que fiz, as “fifty-fifty ” e as outras, que estão guardadas aqui e ali, vejo que possuo um capital, mesmo que tenha dívidas em dinheiro, percebes; investi a minha energia no meu trabalho, fui criativo, criei e agora esse é o meu capital, e é muito importante não pensar: “é um capital que pode ser vendido e portanto transformado em dinheiro”; não, fiz o meu trabalho, ele existe, é a minha riqueza. Outras pessoas terão outro tipo de capital.


Pensar é riqueza. Fazer pão é riqueza. Etc… Gosto de, nos grandes cafés, observar os empregados atrás do balcão, estão sempre ocupados com qualquer coisa, sempre em movimento, têm sempre trabalho a fazer. Essas pessoas são artistas. Detesto as pessoas que não fazem nada alegando que não têm dinheiro para isto ou aquilo. É uma desculpa para não fazerem nada, ou pior ainda, a admissão de que o dinheiro é que é o verdadeiro capital. Isso é capitalismo. Mas há tantas provas no cinema, na pintura, até no mundo dos negócios, de que essa importância que se dá ao dinheiro não deve de facto ser levada a sério. Sempre me fascinaram as pessoas que não têm nada e fazem fortuna.


É uma das coisas de que gosto nos Estados Unidos e acho que essas pessoas são artistas. Aliás, Andy Warhol dizia qualquer coisa parecida, que o artista do futuro é o empresário. Não se deve considerar isso cinismo. Seja como for, também gosto muito do Andy e de outros. Joseph Beuys permitiu-me viver sem me tornar cínico, permitiu-me trabalhar sem complexos, permitiu-me existir sem que as dúvidas que tenho, e que é bom termos em relação ao nosso trabalho, destruam a energia que me faz criar. Bem, isto agora tornou-se um pouco elogioso, mas tu sabes que é preciso, porque às vezes Beuys é atacado, relativizado pelos meus camaradas. Artistas ou não, e tenho este amor indiscutível por ele que durará para sempre. Tenho a certeza.


Tradução do francês de Sofia Gomes
* Thomas Hirschhorn: (1957, Berna Suiça). A sua obra já foi apresentada em instituições como a tate Modern, o Centro George pompidou, o Art Institute of Chicago, o Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, O Museu de Serralves, Porto, e eventos como a Bienal de veneza (1999) e a Documenta de kassel (2002). Actualmente vive e trabalha em Paris

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