quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A forma na música nova - Gyorgy Ligeti 1966


O estudo e a descrição da "forma musical" podem adotar pontos de vista diferentes.

Um abordagem comum conduz à formulação seguinte: "A forma é a relação que as partes estabelecem entre si e com o todo". Se esta definição - empregada não somente na teoria das formas musicais, mas também em outros contextos - é válida e justa, nos ensina muita pouco sobre a verdadeira natureza da forma musical. Descrever esquemas, tais como "ABA", "sonata", "rondó", por exemplo, parte dessa abordagem, assim como descrever a articulação do todo e de suas partes até os motivos e menores fragmentos. Quanto aos novos tipos de música, que escapam aos esquemas formais tradicionais, a maior parte dessas descrições, apoiadas sobre as proporções do todo e das partes, limita-se a uma constatação sem interpretação.

Um abordagem mais aprofundada mostra que a forma musical ultrapassa a simples relação das partes entre si e com o todo. Os aspectos sintáticos adquirem um papel primordial na compreensão da forma: no interior do processo musical, cada fase e cada instante possuem características que contribuem à elaboração do processo. Lugar e função no interior do conjuto, ligação ou independência, parentesco e contraste estabelecem um sistema de relações que provocam a aparência de movimento ou de imobilidade, de "expansão no tempo". Consequentemente, a noção de forma musical se aplica não somente a aspectos de relações entre as partes, mas também à maneira de agir das partes no interior do todo; assim, a função aparece como uma categoria mais decisiva que a simples enumeração dos componentes.

Se a noção de "forma musical" é abordada pelo viés daquela, mais vasta, de "forma", um aspecto suplementar se desdobra: a analogia com o espaço. A forma é, inicialmente, uma abstração de configurações espaciais, de proporções entre volumes de objetos no espaço. Transposta a domínios não espaciais - forma poética ou musical - a "forma" torna-se abstração de uma abstração. Em ligação com a origem desta noção, as formas que se desenvolvem no tempo permanecem associadas à espacialidade. Isso é reforçado pelo fato de, em nossa imaginação, espaço e tempo aparecem sempre relacionados: sempre que uma dessas duas categorias domina, a outra se impõem imediatamente, por associação. Quando se imagina ou se escuta música - fenômeno antes de tudo temporal - relações espaciais imaginárias se criam, em diversos níveis. Em primeiro lugar, no nível associativo: a mudança de altura dos sons - a palavra já evoca uma analogia com o espaço - evoca a vertical, enquanto que a permanência da mesma nota, a horizontal. Entretanto, as mudanças de intensidade ou de timbre - como, por exemplo, a diferença entre um som com surdina e sem surdina - dão a impressão de distância e de proximidade e, de modo geral, de profundidade do campo. Em nossa imaginação, as figuras e estruturas musicais parecem tomar lugar em um espaço imaginário que elas suscitam. Muitas relações espaciais imaginárias se estabelecem em um nível de abstração superior e lá, muitos tipos de espaço são pensáveis. Assim, fala-se de um espaço "harmônico", abstração do espaço associativo das alturas, no qual não são as alturas entre si, mas suas relações que geram o espaço. As relações sintáticas entre os diferentes elementos musicais são igualmente traduzidas por nossa imaginação a um espaço virtual, no qual todos os instantes musicais - fragmentos, motivos, figuras, partes, etc - tornam-se lugares ou objetos, enquanto a progressão musical em seu conjunto aparece como uma arquitetura no espaço. Isso não se aplica unicamente às músicas "estáticas", onde a analogia com o espaço se impõe imediatamente, devido à aparente imobilidade da ação musical, mas, de modo geral, a todos os tipos de música, mesmo evolutivas ou com desenvolvimento. À medida que comparamos involuntariamente cada novo instante percebido com aqueles que o precederam e imaginamos os instantes futuros, percorremos o edifício musical como se ele estivesse presente em sua totalidade. Associação, abstração, lembranças e previsões tecem, precisamente por sua interação, a rede de relações necessária à concepção da forma musical.

As considerações precedentes permitem mostrar a diferença entre música e forma musical: a "música" seria o desdobramento puramente temporal, enquanto a "forma musical" seria uma abstração, apresentando as relações não mais no tempo, mas em um espaço virtual. A forma musical passa a existir assim que se transforma, por uma visão global retrospectiva, o desdobramento temporal da música em "espaço".

A visão global retrospectiva é a história. O aspecto histórico, entretanto, não se refere apenas à forma de uma obra musical particular, mas, para além dela, às relações formais que se estabelecem entre diferentes obras. Efetivamente, é impossível explicar a função dos elementos de uma obra apenas a partir de suas relações musicais internas: as características de cada um dos elementos e suas junções só adquirem sentido quando se relacionam às características e esquemas de junção gerais que se observam no conjunto de obras de um estilo ou de uma tradição dada. As particularidades individuais são apenas reconhecidas quando os pontos comuns ou as divergências com os tipos históricamente estabelecidos são levados em conta. Consequentemente, o fator histórico influi sobre a forma musical, tanto no aspecto sintático quanto na analogia com o espaço musical. A sintaxe musical evolui no curso da história e com ela; o espaço virtual integra, não somente, os momentos de uma obra particular, mas também aqueles do passado: na forma musical, os momentos passados da obra que se percorre e aqueles de toda música vivida tornam-se "presentes". O tempo real no qual a música flui - um tempo que aparece na forma musical como espaço imaginário - não é o único nível temporal da obra: a cada instante, um tempo imaginário entra em jogo, um tempo a uma potência superior, gerado pela compressão do passado que precedeu o desdobramento temporal real da obra particular. Esse tempo imaginário é, por sua vez, transformado em "espaço" por um fenômeno de abstração: a história, tempo armazenado na memória e recuperado no presente, é já de natureza espacial imaginária.

É com a ajuda de modelos saídos de uma mesma tradição que se pode melhor demonstrar a função da história no interior da forma musical.

Tomemos, por exemplo, a sonata do classicismo vienense. O que seus elementos formais apresentam de particular é permitir reconhecer em que fase do desenvolvimento formal se encontra: temas, ponte modulante, desenvolvimento, transição para a reexposição, coda, todos esses elementos não se identificam apenas por sua posição dentro da grande forma, mas também por seu comportamento musical. Esse comportamento pode ser descrito com precisão, por meio de características harmônicas, rítmicas e motívicas, tipos de modulação e mesmo de dinâmica. Quando os modelos da sonata clássica, tornados convenção histórica, aparecem no contexto musical do romantismo, sofrem uma transformação de sua significação formal. (Pode-se interpretar de modo inverso: é precisamente a mudança de significação dos modelos que modifica o contexto.) Entretanto, esta transformação não é completa - a nova significação resulta de um deslocamento dos pontos principais com relação à significação antiga, que é conservada.

Por exemplo, um dos modelos da coda clássica - um gesto de fechamento - resulta, sobre o plano harmônico, da afirmação repetida da tônica e, sobre o plano rítmico, de uma fermata realizada na escritura orquestral. Para a dinâmica e instrumentação, o modelo se compõe de um tutti orquestral fortissimo, brilhante e luminoso, podendo atingir o pomposo, em particular nas aberturas e finales das sinfonias. Ele será desenvolvido e ultrapassado nas aberturas e finales da época romântica. Encontram-se casos extremos desse modelo, sobretudo nas apoteoses conclusivas de Bruckner, por exemplo, no primeiro e no último movimento da Sétima Sinfonia. A mudança de função que se opera com relação à coda clássica é aqui claramente reconhecível: as fermatas escritas não são apenas confirmações do fim, mas também campos sonoros estáticos. Elas certamente conservam o antigo efeito de conclusão, mas não proclamam mais: "agora acabou". Ao contrário, estendem o gesto terminal até sobredimensioná-lo, atrazam-no e fazem com que ele atinja um estado de suspensão, dando a impressão de que poderia durar eternamente. Entretanto, uma coda desse tipo só adquire essa significação quando se observa o deslocamento de seu sentido com relação ao sentido antigo que é trazido na memória. Se é considerada somente em si, como seção de uma obra particular, seu sentido não estaria totalmente inexistente, mas grandemente enfraquecido. É necessário tomar em consideração toda a tradição das significações formais para revelar o totalidade do sentido, estendendo as ligações de uma configuração musical presente às configurações aparentadas que constituem a ressonância histórica de modo sujacente.

O exemplo descrito aqui - um entre muitos outros - permite tirar conclusões sobre dois aspectos da forma musical.

Em primeiro lugar, ele esclarece a particularidade da noção de "significação" concernente à forma musical e à musica, de modo geral. A significação musical, que introduz alguns pontos em comum entre os contextos musicais e a linguagem, tem uma natureza fundamentalmente diferente da significação verbal: a significação musical não tem relação direta com noções conceituais e, consequentemente, apresenta apenas uma aparência de substrato semântico. A música sugere signicações, mas essas significações desaparecem quando se procura fixá-las sobre um plano semântico unívoco. Uma passagem musical só adquire sentido quando remete a outras passagens musicais: não se pode apreender o sentido em si mesmo, mas seus deslocamentos e mudanças. A analogia entre língua e música é também limitada pelo fato que a sintaxe musical é nitidamente mais flexível e efêmera que aquela da língua: ainda que seja parcialmente justificável considerar a música como um sistema sintático, esse sistema é preenchido de incoerências e lacunas internas; ele não é de forma alguma fechado, mas, ao contrário, aberto a todo tipo de manipulação. É por isso que o sistema musical dificilmente satisfaria as exigências de um sistema coerente e porque as tentativas de descrever a música ou a forma musical com critérios da lógica ou da matemática são tão duvidosas. Certamente o sistema musical comporta aspectos lógicos, mas esses, do mesmo modo que os semânticos, são o resultado de uma aparência: a música pode levantar proposições e tirar deduções, mas não se tem garantia de justiça ou de verdade incondicional. A significação e a lógica musicais se comportam com relação à significação e à logica efetivas como sonhos em face à realidade.

Em segundo lugar, o exemplo esclarece a seguinte particularidade da função formal: ela não é compreensível no interior de uma obra única, mas apenas no encadeamento histórico. Deduz-se que a forma musical ultrapassa as manifestações individuais da música: cada momento de uma obra é, em um certo nível, elemento no sistema de referência da forma individual e, em um nível superior, elemento do sistema de referência mais global da história.

O aspecto histórico da forma musical foi remarcavelmente estudado e apresentado por Theodor W. Adorno. Refiro-me particularmente ao livro consagrado a Mahler, enquanto contribuição fundamental a um "estudo histórico das formas".

A abordagem histórica da forma musical é tão essencial que não há material verdadeiro - no sentido primeiro do termo - que possa ser posto em forma pelo processo de composição; as notas, os sons, etc, em suma, o sustrato acústico não podem ser considerados como material para a música, no sentido onde, po exemplo, a pedra ou a madeira são os materiais da escultura. O processo de organização formal na música diz respeito às relações estabelecidas por contextos de notas e de sons: o que se trabalha em música já é "forma" e não material. O sistema da forma musical e de suas transformações na história pode ser comparado a uma imensa rede que se estende no curso do tempo: cada compositor continua a tecer a rede gigante de um determinado lugar, criando emaranhados e nós novos que serão, por sua vez, continuados ou afrouxados e tecidos de um outro modo pelo próximo. Há lugares onde o tecido não continua, mas é, ao contrário, rasgado: ele é retomado em seguida com novos fios e de um novo ponto aparentemente desligado da estrutura prévia do tecido. Mas, se observado com mais afastamento, percebe-se um fio quase transparente se enrolar sem que se note os rasgões: mesmo o que parece desprovido de relação e de tradição entretém uma ligação secreta com o passado.

Traduzido por Rogério Vasconcelos



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